A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 6

De Rafa Lima
Mais do purgatório (Final)

“Um brinde, escritora!”.
A garrafa de espumante trazida pelo visitante em mãos, a rolha voa, Vicky Pierrot celebra, sonha, flutua, enquanto ele tem o cuidado de encher as taças, o som do cristal em contato com o seu semelhante, bebem, salve o prazer, sempre!, sempre!, na verdade, ela saboreia, engole, ele simula, nem molha os lábios, pouco a pouco, o efeito, fraqueza, confusão, surpresa, tristeza, bem lentamente, o grande cágado cagando o fim, “o que está acontecendo?”.
“O que está acontecendo?”, “Vicky Pierrot, agora, você vai ser eterna!”, ela internaliza o ódio ao momento, decifra, tudo tão simples, “o quê?”, “Vicky Pierrot, agora, você vai ser eterna, não compreende?”, “o quê?, eu sou uma ferramenta?”, angústia mais pesada do que o ar, “não, amor”, ele a olha com ternura, “você é o órgão principal, o coração que agora precisa parar de bater para projetarmos a nossa causa muito além na linha do tempo”, uma lágrima de chuva ácida escorre sobre o rosto que recebe a tormenta inexorável da ação-sem-volta, “lá se vai a idiota da esperança”, “não chore”, cogumelo atômico emocional, “para que tudo isso?, porra!”, a leoa ruge, ele aguarda que retorne à forma humana, vem, curiosidade, vem, chicote!, “não sabe, anjo?”, “é lógico que não!”, “com todo o respeito, agora que já criou o que há de melhor, você vale muito mais para a nossa causa depois de morta, não temos mais escolha, o público prefere a necrofilia, é um vício natural do ser humano, saborear a perda ao extremo, seremos para sempre lembrados, você, Vicky Pierrot, escrita para sempre na história da arte!, todos nós a admiramos por se oferecer por inteiro até as últimas conseqüências”, “não é possível!, é uma brutalidade, não concordo mesmo com isso, que primitivo, simiesco, há tanta gente boa que sabe dar valor ao que está vivo”, “são poucos, o nosso objetivo é o mundo”, “eu não quero morrer... por favor”, “ninguém quer, você é linda, muito linda”, “você é louco”, “não diga isso, sou apenas o machado”, “de Assis?”.
Ela ri, o último riso, “como é bom!, amo a vida!, amo, amo, amo!”, ele retribui, um micro-sorriso, “adoraria que ela continuasse viva, mas a causa é o bem maior”, desesperos reprimidos com a agilidade de costume, o silêncio adora cheiro de livro novo, desconfia de que seja o resíduo final do espírito da madeira transformada em papel.
“Tenho tanto a escrever ainda”, “já fez o bastante, amor, genialmente”.
O baque interno, ela cai, “eu fui muito feliz”, vê uma parede, sente falta dela, a língua procura os lábios como se buscasse um derradeiro prazer, alimentar-se da impressão de vida, sente medo, quer voltar atrás, muito atrás, quer se livrar do talento de decodificar o comportamento dos meninos e das meninas, tenta cantarolar, a felicidade vem junto?, “vem comigo, não me abandona”, engasga, “o meu nome é Vitória”, tenta falar com o mundo, “o meu nome é Vitória”, a garganta se fecha, “ar!, ar!, por favor, ar!”, a escuridão da eternidade abocanha a consciência, o silêncio do silêncio do silêncio do silêncio ad eternum. O assassino se ajoelha ao lado do corpo santo sem vida, reverência, solenidade, a certeza da criação de nova idéia-deusa, mas, só para garantir, guarda-lhe a alma no bolso.
“Obrigado, Vicky Pierrot!, os inventores do próximo futuro agradecem”.
Morrer pode ser simples e indolor, nascer é que é um parto.

.... Nota do Rafa ....
Dedico este conto à Diana Regina de Carvalho Damasceno, vó, que me acostumou ao carinho, mas também à falta (já foi flertar com o além), e que, quando eu era menino, quase tão bobalhão quanto hoje, acreditou que eu podia andar de bicicleta.

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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 5

De Rafa Lima

O purgatório

A chave gira apenas uma vez na fechadura da porta do apartamento, aberta, nada alerta, Vicky Pierrot, habituada a dar sempre duas voltas, “ele está aqui”, não mais estranha, nem desconfia, move-se sem medo quando a escuridão no interior do imóvel lhe toma a visão, entra, ouve o som de pessoas em celebração na rua e nos prédios, ano-novo, novo sentido de vida veio visitá-la nessa volta da Terra em torno do Sol, Vicky Pierrot paparicada pela realeza do talento, a euforia da festividade lhe acelera os movimentos, a cidade com ânsia de expansão, a jovem escritora pressente algo extraordinário, a alegria lhe acaricia um mamilo sob o vestido, “que vida-delícia é essa que eu tenho?”, pressiona o interruptor, a luz da sala se acende, “sabia!”, sorri de satisfação, o invasor se tornou um simulacro de amigo.
“Admirável a visão da máfia das letras que inventou para a televisão”, “cheguei perto?”, “não faz idéia”, “muito longe?”, “quem sabe?”, “você é impossível”, “sou?, de qualquer forma, vai trazer benefícios à causa”, “fico feliz em ajudar”, “e, hoje, animada?”, “sempre”, “adora festas”, “claro que sim, vim ao mundo para me divertir também, o prazer é o meu protetor”, “pensei que eu fosse o seu protetor”, “talvez se tornasse se confiasse em mim e me oferecesse algumas respostas”, “confio em você, mas não posso expor outras pessoas que confiam em mim”, “quem são?”, “você não entende”, “Rufus Lemon?, ele existe?”, “não insista, não desperdice o nosso encontro”, o olhar psicótico, ela recua, cala-se, baixa a cabeça, por que o chicote da curiosidade arde tanto?, “natureza humana”, aceita o papel, “sou a ponta da flecha”, ainda resta uma chicotada, “posso ao menos fazer uma pergunta que diz respeito a você?”, “faça”, “Tchuco?”, “o quê?”, “você é o ex-vocalista da banda Sêmen THC que desapareceu há dez anos atrás e nunca mais foi visto?”.
Carrossel espacial-temporal, a cor do silêncio, o homem adquire feições de estátua mítica, representação terrestre de milenar deus pagão, imobilidade da existência, a falta de sentido reluz, o oco, por isso sentem que é preciso inventar o sentido, e outro e outros, só que dessa vez novos!, com resíduo de Big Bang, a transição, o mundo, gigante cágado, move-se passo a passo, século a século, para outro lugar no tempo, de repente, a estátua sorri com o canto da boca.
“Menina, você possui poderes de observação extraordinários”, “não sou mais menina”.
Cravado!, encontram-se no subsolo da alma.
Tanto tempo sem se deixar tocar, por que tanta rigidez?, vai se defender da vida?, o beijo afoga o artificialismo da juventude, u-hu!, o que é a boca?, portal, “ele está com uma aparência terrível, mas que desejo é esse que me causa?”, o mistério engana.

Continua na parte final...
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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 4

De Rafa Lima

Mais do céu

Antes era tudo tão difícil, o que mudou?, agora, o êxito contínuo das histórias de Vicky Pierrot, a reinvenção da importância da palavra escrita no Século 21, que conquista!, (re)conquista do tempo, tubarão mental, ler virou moda mais uma vez na cidade, o passado ecoa hoje e em breve de novo, megalomania compulsiva para multidões em livrinhos, “sim!, livros são asas”, fogos de artifício para as almas, “não se deixe levar pela vaidade, menina, se fizer sucesso, não mostre o rosto”, Tchuco avisa, “e nunca fale sobre nós com ninguém!”, mas ela esperou demais por esse momento, “não vou ter vergonha do gozo, eu quero gozar”, festa, festa, festa, não foi fácil chegar aqui, ao contrário do que alguns sugerem, “que boa vida leva o escritor”, e diferentemente do que idealizam outros, “que realidade fascinante tem quem escreve”, Vicky Pierrot teve que negociar com o cotidiano, dia após noite após dia após noite, fragmentar-se, às vezes até quebrar-se a contragosto, reinventar-se, limpar o fundo do poço, reaprender a encontrar o desejo de voar (com as asas doloridas é foda!) e principalmente identificar a própria raiz, conhecê-la, saboreá-la, reconhecê-la pelo cheiro e pelo gosto, essência agridoce, o pé-no-chão que aponta em contrapartida para o centro da Terra, equilíbrio?, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, viva!, viva!, viver durante anos no passeio de montanha-russa emocional, “a vida do escritor é a dança do baile de formatura com o caos”, festa, festa, festa, Vicky Pierrot conhecida, lida, devorada por novas mentes, iludida?, o sucesso cega o sonhador, enquanto a podridão não cobra os juros do empréstimo, deixe a menina ser feliz!, Vicky Pierrot, sinônimo de felicidade, cria, escreve, produz, à maneira dos velhos tempos de início da Era Digital, lá longe, os dedos de volta ao teclado do computador, os olhos disparando palavras, conflitos, sentidos, soluções, mentiras?, também, talvez sem perceber que engana a si mesma, o melhor momento da vida, quer acreditar, mulher-invisível, o corpo feito de textos, Vicky Pierrot apenas escreve, mais nada, atinge o sentido mínimo, então, o repórter Andreas Melo, cão farejador, depois de muito xeretar, investigar daqui, procurar dali, ler isso, pesquisar naquilo, fingir um dia, atuar no outro, sempre registrando, passo a passo, hora a hora, “calma, que o caminho é por aqui”, descobre a mente criativa por trás da máfia das letras, aproxima-se, cria a conexão, alimenta o ego alheio, dança no baile de formatura com o caos.

“Admiro o seu trabalho”, “obrigada”, “parabéns, você produziu uma obra e tanto em pouco tempo”, “escrever é a minha conseqüência por estar viva”, “o seu nome é mesmo Vicky Pierrot?”, “na verdade, Vitória”, ela gosta dele logo de cara, “que divertido”, ele gosta dela, “mais bonita do que eu imaginava”, a princípio, papo informal sem más intenções, “você vai acabar divulgando tudo o que eu falar aqui, certo?”, divertem-se, “é o meu trabalho”, “como me achou?”, “tenho os meus métodos”, “quanto mistério”, “o mistério aqui é você”, “sou?”, “estou produzindo uma matéria sobre a máfia das letras”, ela ri, desconversa, “isso não existe, só serve para potencializar o interesse do público”, “não existe mesmo?”, “não que eu saiba”, “quem são os seus editores?”, “não posso contar”, “por quê?”, “eles são tímidos”, “não há nenhuma informação nos livros além do texto”, “minimalismo”, “é ilegal”, “estilo”, “sempre irônica?”, “não vai me entregar, vai?”, “já ouviu falar de Rufus Lemon?”, “outra invenção para tornar o Rio de Janeiro mais atraente do ponto de vista artístico depois do período de estagnação criativa que passou”, “lembra do Sêmen THC?”, “claro, eu tinha as músicas, sabia as letras, fui a vários shows”, “eu também gostava”, os dois cantam um sucesso musical do passado, “menino, como anos depois essas canções continuam a tocar nas nossas cabeças?”, “é o trabalho deles, também conhecido como lobotomia social”, riem mais, “você conhece o Tchuco?”, “o vocalista que desapareceu?”, “sim”, “vi em shows, ninguém soube dele depois que largou a banda”, “eu o encontrei”, “sério?”, “dois anos depois do fim, descobri que trabalhava num matadouro”, “que louco!”, “não é?”, “mas ele sumiu de novo?”, “perdi o rastro dele”, “você gosta muito do seu trabalho, hein, rapaz?”, “não menos que você”, “touchè”, “o que ele estava fazendo no seu apartamento na semana passada?”, “quem?”, “o Tchuco”, “você sabe onde moro?”, “ao que parece”, “você é perigoso”, ela sorri para ele, “não, se estivermos no mesmo barco”, “do que está falando?”, “eu posso fazer você chegar a mais pessoas do que imagina, milhões, a televisão é fascinante”, “como?”, “seja honesta comigo”, “para depois me virar as costas e eu ficar arrependida do que fiz?”, “você não vai se arrepender”, “como pode ter tanta certeza?”, “já vi acontecer muitas vezes, me dê uma entrevista exclusiva com a equipe de filmagem, vai ser conhecida no mundo todo”, “para quê?”, “para que você escreve?”, “para acertar as pessoas em cheio”, “viu só?, posso ajudá-la”, “o que tenho que fazer?”, “apenas me diga a verdade”, “não se sabe o que é a verdade, portanto, vamos inventá-la”, “só não minta”, “eu não minto, ao menos não enquanto estou trabalhando”, “trabalhando?”, “é, sonhando”.



Continua no purgatório...



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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 3

De Rafa Lima

O céu

Também chove no paraíso!, para refrescar de tanta perfeição, “livros são asas”, Vicky Pierrot se tornou parte do mito da máfia das letras, o grupo de pessoas que se fizeram invisíveis para intoxicar a cidade de cultura questionadora, imoral, poética mas também carnívora, nunca foram descobertos os métodos de atuação, somente se criaram hipóteses, conjecturas e lendas urbanas, “Rufus Lemon é um dos mentores?”, “não viaja, esse cara nunca existiu!”, não se sabe, mas fato é que os minilivros apareceram do nada em bairros diferentes para públicos diversificados em variadas ocasiões, resguardados pelo elemento-surpresa a que nenhuma investigação do poder público foi capaz de neutralizar, “de onde tiram o dinheiro que financia a brincadeira?”, “por que perder tempo com um esquema nada lucrativo?”, “qual é o real objetivo da ação?”, “será possível uma máfia que aposte no desenvolvimento intelectual do povo?”, muitas perguntas sem esclarecimento, por outro lado, quem disse que a população não se interessaria por literatura?, Deus está na comunicação, o Diabo na falta dela, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, de graça, bem escrita, acessível, fragmentada, adjetivada e futura, olhos com sede, água vale mais do que petróleo, leitura estimulante a quem não se habituou a ter os clássicos entre as mãos, como é bom produzir novos leitores, despertar-lhes o desejo, soprar-lhes no cangote imagens de mundos e de idéias que os libertem por alguns instantes de tudo aquilo que já está estabelecido ou quase morto-vivo, desejo, desejo, desejo, da menininha tímida ao herói que não vê mais graça em tanta luta até o velho desenganado, (os muito antigos diziam: “Vá se phoder!”, com ph, estranho!), como é possível que a reunião de palavras possa dar tanto tesão?, que a transcrição do inquieto vasculhar da alma humana produza tamanha simbiose com o que há de melhor por vir?, que um livro se torne de repente um cobertor contra tantos vazios?
“Vicky, vamos apavorar essa cidade com pensamentos fantásticos, você só precisa criá-los e amamentá-los, a gente cuida de todo o resto”, “a gente quem?”, “não interessa a você saber mais do que já sabe, é mais seguro, acredite”, “sei, aliás, não sei, nem o seu nome”, na verdade, reconheceu-o de outra época, mas ainda não quer revelar a descoberta, “está disposta a se entregar de verdade à nossa causa?, quer ser a maior escritora do nosso tempo?”, “é claro, lógico, óbvio!”.

Continua...

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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 2

De Rafa Lima

Mais do inferno

Escrever é uma obsessão disfarçada de criação, “escrevo para o futuro”, Vicky Pierrot se resignou, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, sempre à espera de algo grandioso e edificante que compense tamanha entrega, fodidinha a menina que sonha através da arrogância do talento e afinal vê o mundo olhá-la de volta sem piedade, “a maioria dos escritores não compreende o público!, além dos conteúdos, quem lê busca um encontro invisível, uma ponte de integração às outras pessoas, não é por acaso que os mais vendidos vendam ainda mais quando são anunciados como tal e os autores clássicos sejam mais respeitados na maior parte dos casos pelo nome do que pelas obras, o livro é o mais espetacular portal entre solitudes que ultrapassa a barreira do tempo”, ela sempre se regozijava ao identificar as fórmulas de sucesso da indústria cultural, “conhecimento é solidão, sabedoria, conexão”, agora!, “me deixa em paz, me deixa em paz!”, primeiro pensa no ex-namorado, nem se dá conta, “fora de mim!”, consciência-armadilha, porque reveladora de amor-demônio que não a abandona, abre os olhos, “eu vou acabar com você, Vitória!, você não vale nada sem mim!”, está caída, o chão parece tão confortável, papai, “em casa”, ergue a cabeça, o invasor a observa, não se move, apenas observa, o terno preto, a gravata da mesma cor com brilho maior, o corte de cabelo moicano, os olhos fixos, expressão de estátua de bronze em que não se adicionou alma, “real ou imaginário?”, ela se levanta, “os dois”, reage, “o mesmo”, leoa, a raiva supre a necessidade do apetite mal tratado, enfim, a voz! “Quem é você, porra?”.

Continua no céu...


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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 1

De Rafa Lima

“Era um grito de dor e raiva que eu queria devolver ao mundo, mas reprimi, condensei em minhas entranhas, cozinhei em fogo baixo e, antes que virasse doença, transformei em arte minha, de volta ao mundo como inspiração de vida o lamento de morte, porque enquanto eu puder criar, não existe moléstia, enquanto eu quiser ir além, a perda me afeta, me abate, sem me impedir de ir bem adiante! O vazio me locomotiva”.
Rufus Lemon
O inferno
A chave gira apenas uma vez na fechadura da porta do apartamento, aberta, alerta, Vicky Pierrot, habituada a dar sempre duas voltas, “só para garantir”, estranha, desconfia, move-se com lentidão quando a escuridão no interior do imóvel lhe toma a visão, entra, ouve o som da chuva que do outro lado da vidraça da janela renova o espírito de obviedade do cotidiano, a cidade em crise de repetição, a jovem escritora pressente algo incomum, um arrepio lhe atravessa as costas, “o que está acontecendo aqui?”, pressiona o interruptor, a luz da sala não se acende, “droga!”, caminha até a cozinha, nada feito, “sem luz, só me faltava essa”, pensa no ex-namorado, “cadê a mulher independente?, agora quer a minha ajuda?, como é prático para as mulheres ser machistas quando convém”, ela concorda, auto-ironiza-se, até que se deixa tocar pelo ressentimento, “ainda bem que você não está aqui, seu sabetudo, metidão, tenho nojo de você”, treme, jamais desejaria sentir tamanha imundície sobre uma história de plenitude a dois, “que se dane!”, ascensão e queda, vai até o primeiro quarto, negativo, no segundo o mesmo quadro de ausência de luz, abre uma gaveta, pega a lanterna, “meu anjo da guarda tecnológico”, e espia pela janela agora mal refletida em cuja vidraça se cria uma imagem loira borrada entre as pequeninas linhas líquidas que escorrem, apostam corrida entre elas para atingir o fim, parecem jorrar de Vicky Pierrot, “que bonita fico quando me faço chuva”, os prédios em frente se encontram apagados, a altitude não ameaça hoje, de repente, a quilômetros, a explosão no topo de um edifício babélico micro-ilumina o blecaute do mundo, amarelo, fogo, fúria, trevas da clareza, aos olhos de Vicky Pierrot parece uma cena de guerra, “minha nossa!, de onde tirei isso?”, desperta, o prédio está intacto, maldita imaginação, ilusionista dos sentidos, prestidigitadora da vontade, tão lunática quanto é neurótica a impressão de realidade, sente o coração se acelerar, senta-se em meio à escuridão à beira da cama, quase cai, mas já conhece a lógica do declínio, sustenta-se mais uma vez, perdida, perdida, perdida, o caminho inicial de todo escritor é a perdição, o escritor é esquecido antes de ser conhecido, como uma vida de trás para a frente cuja morte significa eternidade, o acordo se faz com o tempo (você quer ou não?), então, luz!, “aêêêêê!”, Vicky Pierrot se anima, num instante, acendem-se as lâmpadas dos quartos, da cozinha e da sala, desliga a lanterna e sente saudade dela, de ser a condutora da iluminação, “hum, que fome!, estou há muito tempo sem comer, preciso parar de agir assim”, ela se levanta, anda, “que boba!, fiquei alegre do nada”, retorna ao cômodo central do apartamento, de repente, não-ar!, a visão, sensação de tonteira, pernas bambas, o grito fica entalado, “quem?”, medo, queda da pressão arterial, luta, vai desmaiar, um homem, um invasor, “mas como?”, um homem todo de preto com corte de cabelo moicano sentado imóvel na poltrona, vai desmaiar, vai desmaiar, o chão a abraça com a rigidez do carinho paterno, a dor nunca foi um privilégio, não haveria de ser agora, o ângulo do olhar se inclina, a escuridão de novo, agora vinda de dentro.

Continua...


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Parte 3 do conto Matadouro das virtudes

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... Tchuco, desalmado, Tchuco, fodido porque longe demais de qualquer outro ser, Tchuco, privado da grandeza da simplicidade, Tchuco, privada de toda essa merda de controle do comportamento social através da alegria artificial gerada por uma banda de dimensões megalomaníacas, Tchuco, doente, muito doente da cabeça, Tchuco, Deus!, Tchuco, deus!, Tchuco?
“Que porra de doença é essa, seu psicólogo filho da puta? Não faltava inventar mais nada? Sabe quem eu sou? Esse é mesmo o seu diagnóstico?”.

Continua na matadora parte final...

Parte 3 (Final)

Ginecofobia, dá-lhe!, isso sim, tem noção?, ginecofobia, que loucura, os jornalistas deliraram de prazer, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, quando souberam dias depois por um misterioso informante cuja voz ao telefone muito se assemelhava à do guitarrista do próprio grupo Sêmen THC, Horácio, quem poderia imaginar?, ginecofobia, um astro de tamanha magnitude reduzido à humilhação pública, à galhofa nos bares da cidade, clubes noturnos, inferninhos, colunas sociais, programas televisivos, em toda a parte a palavra da moda era ginecofobia, em toda a parte o infortúnio do talentoso artista fomentava discussões acaloradas tanto entre leigos quanto entre especialistas, quem diria, hein?, que coisa meiga!, que flor campestre!, viadinho, pula, viadinho!, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, ginecofobia, pavor das mulheres. Cai dentro, cai fora, cai dentro, cai fora, cai?
“Por que para algumas dessas doidas o sexo funciona como um substituto à tristeza?”, o carro conversível preto, 144 quilômetros por hora! “Falta pouco. Falta pouquíssimo!”. Pensa no machado e trinca os dentes.
Rock’n’roll é o nome dado à mistura de melancolia transcendental com raiva dançante. Tchuco estaciona o veículo no acostamento da rodovia em um ponto longínquo, área rural cercada por fazendas. Tem início o passeio no carrossel espacial-temporal. Ele abre o porta-malas do automóvel e retira a ferramenta com que abre passagem com facilidade através da cerca de arame. Retorna ao carro, guarda o objeto e, glória psicótica!, maravilha maníaca!, empunha o machado. Tânatos é o nome com que Tchuco o batizou. Fecha o porta-malas e invade a passos largos a fazenda em companhia do novo melhor amigo, enquanto a noite se aproxima. Quem pensa que a subida é o que há de bom e a descida é a parte infeliz da vida nunca andou de montanha-russa, nunca brincou de carrinho de rolimã, nunca se entregou ao fascínio por uma cada vez mais decadente banda de Rock, nunca se lançou em uma paixão irracional, doentia porque bem-vinda.
Anda. Anda. Anda. Conversa com Tânatos.
Afinal, aqui estão elas, ninguém por perto!, aqui estão elas, impassíveis, indiferentes às questões de existência e aos conflitos psicológicos, aqui estão elas, que animais fascinantes, quanta carne!, quanto desperdício da natureza!, aqui estão elas com seus olhares imbecis, nada misteriosos, como o de alguém que pratica sexo sem o menor desejo mas tenta esconder, olhos vazios, passivos, como o de uma população inteira submissa e acovardada diante de alguma arbitrariedade do governo, bovinos porque melhor assim, aqui estão elas outrora sagradas, as vacas!
Treze!
“Eu exijo uma vida melhor!”, berra Tchuco diante dos animais.
Ele espera uma resposta em palavras ou mugidos, mas nada acontece.
Num instante, o grito! Tânatos cai brilhante sobre uma, duas, três delas com vigor destrutivo, fazendo com que as dez restantes com passos desengonçados fujam, porque vacas mas não totalmente idiotas. Tânatos sobre as três condenadas, ferindo-lhes o corpanzil malhado em diversas partes, esguichando sangue em excesso sobre o astro da carnificina que em catártico movimento de fúria ataca repetidas e repetidas vezes e mais algumas, mais umazinha só, agora, agora, os animais indefesos tombados sobre o solo. Aço que corta o couro. Vontade que dilacera o sentido de qualquer vida. Quer muito mais! Ataca! Ataca! Ataca! Repete! Ataca! Tânatos sobre as vacas, vermelho como a menstruação da terra.
“Morre! Morre, por favor! Morre logo!”.
Tchuco sente com as pontas dos dedos da mão livre do machado o rosto colorido de sangue. Prova o gosto. Reencontra a idéia de uma alma própria, definida em princípios pessoais. Enfim, chora. Chora, seu puto, chora! De onde vem tanta raiva não sabe, mas sente que em parte as promessas são sempre falsas, porque nunca se realizam como se espera.
De repente, o som do tiro! A bala passa zunindo junto ao astro que com o susto deixa o machado cair. Tchuco avista dois homens armados correndo em sua direção a muitos metros de distância. “Fodeu!”, corre, vai, corre, porra!, outro estampido de arma de fogo, “caralho, essa passou perto!”, corre, corre, corre, seu puto, tiro, tiro, tiro, errou, errou, errou, nada é capaz de acertá-lo, é um deus!, corre, deus!, corre, mais um tiro!, afinal, cruza a passagem na cerca, alcançando a rodovia, e atira-se dentro do carro preto conversível, o banco está cheio de sangue, “foda-se!”, com a mão trêmula, dá a partida no motor e acelera de zero a cem quilômetros em quatro segundos, chora por estar vivo, chora por excesso de tensão, chora por estar aliviado por matar umas vaquinhas de olhos vazios como os dele, chora porque Tânatos ficou para trás.
Dias depois, Tchuco raspa o cabelo, muda-se para uma região distante dos bairros badalados, onde espera não ser reconhecido sob a nova aparência, e arruma um emprego. No novo ambiente de trabalho ninguém conhece a banda Sêmen THC. O avental sujo de sangue lhe causa bem-estar. O som do local é de um terror poético. O dono do matadouro se espanta com o empenho do novo funcionário, afinal, os jovens não gostam de trabalhar, os jovens só querem saber de diversão!

Fim?

Parte 2 do conto Matadouro das virtudes

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... Entretanto, aos amigos o astro do Rock se dizia entregue ao sentimento por Ella e rasgava-se em declarações de amor à beldade-mocinha de desejos ensimesmados embora ingênuos que ansiava pela chance de um dia interpretar nos palcos a Ofélia de Shakespeare e aquela do Molière, que como ela costuma afirmar “é um presente para uma atriz”, embora não se lembre do nome da personagem. Que casal! Ah, papparazo! Que casal!

Continua...

Parte 2

Assim, casaram-se logo depois em cerimônia restrita a amigos, causando rebuliço no setor da imprensa voltado ao sensacionalismo, e viveram semanas de paixão cinematográfica que não tardou em se esfacelar. Assim, Ella conheceu o egomonstro devorador de sutilezas cotidianas e Tchuco descobriu a princesa mofada. De madrugadas às manhãs seguintes perdidas, cozinhavam-se em convenções de comportamento padrão. Até que em uma noite de calor em que Ella Benarrivo cavalgava o cacete mediano e grosso de Tchuco com prazer repetitivo e quase já dispensável, afinal, ela não considerava o ato sexual tão empolgante, “parece ginástica sem roupa e com lubrificação”, refletia a pequena múmia, o marido começou a pensar em comida durante o coito e tomado pela súbita vontade de devorar um sanduíche de filé de carne bovina com uma rodela de abacaxi arremessou a esposa para fora da cama, derrubando-a ao chão com brutalidade, levantou-se, vestiu-se diante do olhar de estupefação da mulher rejeitada e retirou-se sem dizer nada.
“Aonde você vai, seu estúpido?”, gritou ela sem conseguir uma resposta, irritando-se pois não foi capaz de agir naquele momento como Ella, que em momentos menos reluzentes teria partido para esbofetear a cara do escroto diante de tamanhos desrespeito e decepção.
Três raquíticos meses de ilusão! O matrimônio entre semelhantes personalidades do mundo do entretenimento durou singelos três meses e chegou ao fim pela violência causada pela falta que faz um sanduíche de filé de carne bovina com uma rodela de abacaxi! Não houve jeito! Tiveram que conhecer novos amigos, os advogados.
“Ele é um maníaco!”, declarou posteriormente Ella Benarrivo do alto de sua loirice pernóstica e embutida de um princípio silencioso de fascismo, embora sem maldade, só com arrogância, em entrevista exclusiva a um socialmente respeitado programa de fofocas que entretém donas de casa, garotas de programa, desempregados e escritores durante a tarde. “Depois de uma hora ao meu lado, onde quer que a gente estivesse, Tchuco me expulsava, mesmo quando nos encontrávamos em meu apartamento! No meu apartamento! Dá para acreditar?”.
“Que absurdo!”, indignou-se a sempre-sempre nobilíssima apresentadora do programa. “Não é o primeiro caso de violência em que Tchuco se envolve! Depois de todo o carinho que as meninas desse país deram a ele. Sem as mulheres, esse rapaz não seria ninguém! Ele precisa urgentemente de tratamento psicológico!”.
A banda entrou em crise por causa do escândalo.
“Vá se foder, Vincent! Os seus conselhos não dão mais certo! Aliás, todos vocês estão querendo acabar com o que eu conquistei, porque eu sempre fui maior! Fora da minha vida, seus parasitas!”, explodiu Tchuco.
“O que é isso, putão? Somos amigos há tanto tempo!”, contemporizou Horácio.
“É isso mesmo. Calma, cara. Nós amamos você”, completou Canhoto.
“Hipócritas! Parasitas! Só pensam em foder menininhas e em ficar alucinados! Eu sou a banda! Estou falando de grandeza, seus animais! Grandeza universal! Eterna! Histórica! Por causa da insegurança e falta de visão de vocês, estou caindo! Estão me puxando para baixo”.
“Vá tomar no cu, Tchuco!”, reagiu Horácio com energia. “Está delirando!”.
“É isso mesmo. Calma, cara. Nós amamos você”, repetiu Canhoto. “Caraca, estou muito louco!”.
“A contagem regressiva está chegando ao fim, seus tolos!”, de repente, interveio Vincent Casablancas, o empresário. “Desse jeito, vocês não duram nem mais uma semana. Vão viver para sempre na sombra do que um dia foram!”.
{O que é o fim?}.
Tchuco desapareceu por dias. Shows foram cancelados. Fuga número vinte e dois para piano, guitarra e quarteto de violinos. Trancou-se na impossibilidade de encontrar alguém que sentisse o mesmo medo mórbido que ele e deixou o mundo do lado de fora, ligação direta à solidificação interior de incomum patologia.
“É ele! É ele! É o Tchuco!”. Disfarce revelado! Mais gritos, choros, que berreiro, nova correria, mais um pandemônio!
“Chega dessa perseguição, suas loucas carentes! Vão procurar homens reais! Eu não existo para vocês. Sou apenas uma idéia!”.
A paixão de outrora pela busca do ideal de mulher, a bocetinha pensante, sonhadora e pervertida, fora atropelada por um trem cuja carga transportava caixas com raiva, ceticismo e cansaço. Daí em diante, o processo de corrosão ganhou velocidade até que Tchuco se viu diante do próprio reflexo no lago onde se afogam sonhos e vislumbrou uma entidade humana cuja idealização sentimental conhecida como alma fora extirpada. Tchuco, desalmado, Tchuco, fodido porque longe demais de qualquer outro ser, Tchuco, privado da grandeza da simplicidade, Tchuco, privada de toda essa merda de controle do comportamento social através da alegria artificial gerada por uma banda de dimensões megalomaníacas, Tchuco, doente, muito doente da cabeça, Tchuco, Deus!, Tchuco, deus!, Tchuco?
“Que porra de doença é essa, seu psicólogo filho da puta? Não faltava inventar mais nada? Sabe quem eu sou? Esse é mesmo o seu diagnóstico?”.

Continua na matadora parte final...

Parte 1 do conto Matadouro das virtudes

De Rafa Lima

“É ele! É ele!”. Gritaria, uma histeria absurda, flashes fotográficos em exagero, correria, confusão, seguranças, barreiras policiais para deter mulheres desesperadas, meninas adolescentes sonhando em perder a virgindade, em dar umazinha ou em casar com o astro e homens invejosos que pudessem atentar contra a vida do ídolo maior da contemporaneidade, a porra toda do circo oficial do mundo do entretenimento musical para a massa.

“É ele! É ele!”. Poeta, conhecedor da alma humana, gênio, modelo estético da ousadia, pica doce! Tchuco, o vocalista carismático, quase messiânico, do maior fenômeno fonográfico dos últimos dez anos, a banda Sêmen THC.
“A minha música não é religião, porra! Parem de me seguir como idiotas!”, esperneava ele, enquanto chutava as fãs que se aproximavam, abrindo caminho.
“Me chuta, Tchuco! Me chuta!”, gritavam algumas.
“Pode bater! Pode bater!”.
“Me morde! Por favor, deixa a sua marca em mim!”.
“Você viu? Ele me empurrou! Ele me empurrou!”.
O carro conversível preto, 129 quilômetros por hora! Três anos representando o ilusório papel de entidade viva da cultura popular enferrujaram os mecanismos internos de vontade própria. Por essa razão, o machado.
“Não se preocupe, putão! O pessoal da gravadora tem tudo pronto. Não vamos ter que pensar em nada. Batalhamos pra caralho para chegar aqui. Agora, é a curtição!”, garantiu Horácio, o guitarrista bonitão, à época de empolgação, quando o sonho de tanto tempo enfim tomava alguma forma real.
“Vou comer todas as minha fãs”, delirava Canhoto, o complexado, repetição ambulante do clichê do baterista bobalhão, oculto dos holofotes pela sombra dos egos dos demais integrantes.
Sêmen THC! Tchuco, Horácio e Canhoto! Gozo tetrahidrocanabinol! Sêmen THC! Que fenômeno de público e de crítica! Que sonoridade! Que conexão com a platéia! Que estouro mercadológico supersônico! Mas Tchuco foi ainda mais longe! Ah, se foi! Puto, puto, puto! Tornou-se no imaginário social um deus da criatividade, do sentimento, da liberdade, uma espécie de Apolo eletrônico com voz encantadora. De tal modo era desejado e querido que passou a ter o direito de determinar normas de funcionamento e critérios de seleção da incrível e invejável série de orgias regadas a quitutes narcóticos, guloseimas psicodélicas e refrescos estimulantes que realizou com modelos, artistas e mulheres de todos os tipos. No entanto, o tempo não se deslumbrou com o mito da indústria e, quando o astro se acomodou no novo cotidiano libertino sem encontrar tanto quanto antes satisfação em sua megalomania, Cronos o levou ao labirinto onde se encontra agora.
O carro conversível preto, 137 quilômetros por hora! O sucesso é uma delícia, mas se torna vazio caso somente se reproduza em si mesmo, sem idéias e movimentos renovadores. “Maldita condição humana que me vicia com suas belezas, neuroses, dores e prazeres, prazeres, prazeres, o quê?, prazeres!”. Que prazer traz o machado.
Durante os shows, Tchuco passou a recorrer a um conhecido truque de vocalistas. “Canta por mim, platéia, que já não agüento mais gastar a minha vontade pela música nessa porcaria que antes me dizia tantas coisas mas que agora é apenas um bagaço de obra sonhada como algo grande”. Cansado da repetição de uma identidade de plástico, doidão, doido de pedra, roubado da própria consciência após receber o baque terrível e dilacerante, que não cicatriza mesmo, que se foda!, o buraco está lá e continua aberto, causado pela inesperada e violenta notícia da morte da mãe em um assalto, a quem propositalmente não via há dois anos, com quem rompera relações para se sentir um homem livre, pois a mulher que o carregou no útero por tanto tempo tentava controlá-lo, protegê-lo, mimá-lo a todo custo, enquanto ele queria ser uma espécie de porra-louca supra-humano sem necessidade de família, Tchuco se vitimizou no espetáculo da vontade própria. Pior para as mulheres que de modo repetitivo mergulhavam nas diferentes e renovadas camas onde o homem-mito se escondia.
“Fora daqui, suas vacas! A sua submissão interesseira me dá nojo! Deixem-me em paz!”.
As mulheres corriam nuas, abraçadas às roupas, e aterrorizadas para fora dos sucessivos quartos, perguntando-se como um compositor de letras românticas e poéticas e melodias tão marcantes poderia se assemelhar tanto a uma criatura monstruosa, egoísta, merecedora de pena, ódio ou indiferença. “A raiva é uma benção!”, em contrapartida, pensava Tchuco antes de se render a rapidíssimos momentos de culpa. Sempre e novamente e mais uma vez e “agora vai ser diferente”, prometia-se o astro, em muitas e muitas ocasiões.
“Fora daqui, suas vacas!”, repetia-se o quebra-quebra para desagrado daqueles que antes o amavam.
Medida de emergência, Tchuco foi orientado por seu suposto protetor, o empresário da banda, Vincent Casablancas, a se casar com a estrela em ascensão Ella Benarrivo. Durante a madrugada seguinte, o deus-músico conheceu a moça e apaixonou-se de modo categórico pela atriz cuja celebridade foi construída em novelas, filmes, comerciais de cartão de crédito, de banco, de perfume e de sabonete, ensaio sensual em revista de nudez de grande destaque e, sabe-se lá com qual lobby porque, oh, proteja-me, minha santa bocetinha amiga de todas as horas!, parecia piada quando se anunciou a vencedora, com a premiação de melhor atriz no festival cinematográfico mais conhecido do país. Má atriz? Não! De jeito nenhum! Ella Benarrivo precisa ainda evoluir bastante em sua carreira para ter o direito de ser considerada uma má atriz. Entretanto, aos amigos o astro do Rock se dizia entregue ao sentimento por Ella e rasgava-se em declarações de amor à beldade-mocinha de desejos ensimesmados embora ingênuos que ansiava pela chance de um dia interpretar nos palcos a Ofélia de Shakespeare e aquela do Molière, que como ela costuma afirmar “é um presente para uma atriz”, embora não se lembre do nome da personagem. Que casal! Ah, papparazo! Que casal!

Continua...

Parte 7 do conto Meu bebê

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... “sou boa demais, mas ninguém é bom o bastante”, alegra-se, não imaginava que o novo homem fosse assaltá-la, o brutamontes preferiu a bolsa recheada a uma bocetinha chorona, soco na face, ela despenca, não grita, porque não mais se culpa, sente dor nos joelhos ralados, sem dar indícios do crime sofrido, no rosto frieza que se aprende, Alice Holanda retorna ao lar, marido e filha dormem em paz, “bons sonhos!”, a ironia, descobriu de onde vem o seu poder, “banalizei os meus amantes, preciso reinventar os homens”.

Continua na última parte...

Parte 7 (Última)

Mas o teste, atraso, tremor nas mãos, “os sintomas são claros, agora, vai, agora, vai, não é possível que seja outra promessa fajuta”, já estava quase desistindo, positivo, “positivo, positivo, positivo!”, Alice Holanda exulta, comemora, transborda, sozinha e descalça, o chão frio, a alma febril!, o momento é dela!, o universo em um segundo, logo, a despedida, “está chegando a hora”, ela vai à palestra de Michelângelo Poyares, sociólogo sarcástico, porque quer olhar uma última vez para Liam, o amante galáxico, o terceiro da lista dos segredos, mas o melhor de todos!, ela o observa de longe, sem se deixar notar, ao mesmo tempo em que ouve as provocações, “no mundo atual, paradoxo total, o desejo de gerar filhos é um ato de egoísmo contra a humanidade, em favor da individualidade e do modelo familiar enquanto sustentação do sistema econômico. A superpopulação é causadora da hiperviolência, do desemprego, da escassez de recursos naturais, do aquecimento global, etc, etc e mãe de todas as etcéteras”, garante Michelangelo diante dos olhares de admiração da platéia formada em maioria por seguidores-quero-o-seu-lugar-professor, “que se dane! Eu nasci para ser mãe de um menino!”, confronta em si mesma Alice Holanda, em alguns dias, vai receber a notícia de que vai ser mãe de um menino, Juninho vai ficar tão feliz!, afinal, o que sabe ele?, a vida de Alice Holanda vai voltar a ter responsabilidade, importância e correção, “adeus, farra! Vou-me embora cuidar do pequenino deus que carrego em meu ventre e em breve vou trazer à vida”, o superego contra-ataca, “embora que se exploda o mundo”, diz o sociólogo sarcástico Michelângelo Poyares na mente da mulher grávida, mas ela reage, força, menina, força, “ele não conhece a grandeza do amor de mãe, nem de pai, pois não tem filhos!, o que sabe afinal do assunto?”, senhoras e senhores, nada de fogueiras!, ela abandonou a bruxaria, curada!, está finalmente livre de todos os males, palmas?, palmas!, isso!, assim!, sejam exagerados, de existências hiperbólicas, come, come, come, sigam os desejos planejados pelo pac-man existencial que guia as nossas escolhas, já está tudo pronto!, acomodem-se, chega de invenções, nada de vidas desreguladas, tudo pronto!, para que perder tempo?, lendo livros por exemplo, tempo é dinheiro, dinheiro é mato, (tempo é mato?), já está tudo decidido, o sentido da vida é a conquista para se exibir, “eu consegui, olhe aqui!, eu consegui!”, vejam que belo!, vislumbrem Alice Holanda, a mulher mais feliz do planeta nesse exato momento, planeta umbilical, nasceu!, nasceu!, nasceu!, charutos para todos, bem-vindo à manjedoura, pequenino, estranho seria se viesse outra menina, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, sinto que se aproximam três reis magos com presentes, bom presságio, você está protegido, meu querido, jamais sentirá medo da escuridão e da falta de sentido, nada disso, nada de pensamentos extravagantes para você, já está tudo pronto, tudo certinho, o azul é a cor dos meninos, nada de liberdade, aquela putinha oferecida, o sentido é você, vocêzinho, vocêzão, dubiduba, “oh, meu bebê! A mamãe está aqui”.

Fim

Parte 6 do conto Meu bebê

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... o marido baixa os olhos, escolhe as palavras, prepara-se para o que vier, vai, vai, vai, “você tem outro?”, Alice Holanda se espanta, hesita, “não tenho mais ninguém, nem a mim mesma”, Juninho concorda, Clarissa abre o berreiro, marido e mulher trocam olhares como se não existisse o resto do mundo, há quanto tempo!, momento perecível de eternidade, silêncio-nostalgia, ela se embaraça, ruboriza-se, corta a conexão, ele aceita a condição, “bom passeio, querida”, mas bem que poderia ser “ainda amo você, menina” ou “vê se não enche a porra do saco!”, múltipla escolha.

Continua na penúltima parte...

Parte 6

A noite compreende as motivações de Alice Holanda, por alguns momentos fora do esquemão, “mas agora é tarde, filhota”, “será?”, “você também sentiria falta de tudo de bom que conquistou durante o caminho que no momento renega”, “provavelmente”, “você se move pela falta”, “eu?”, “você só dá real valor àquilo que tem chance de conquistar para perder, o resto de nada serve”, “caraca!”, “você é assim?”, “por quê?”, a rua está vazia, a lâmpada do poste de rua se apaga à aproximação da esposinha caótica, ainda delícia?, sim, sim, sim, ego megalomaníaco ferido, acredita-se responsável pelo instante de escuridão da via pública, “que ziquizira dos demônios!”, não crê que a lâmpada simplesmente se queimou, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, maldição autodivinatória, a prisão do individualismo, dEUs, a moeda terceiromilenar, “oh, não, amor, você não está sozinha! Não seja injusta com tudo o que tem ao seu redor”, ela reconsidera, mas perde as forças, “quero mamar mais para dar de mamar”, gosta da frase que criou, o cinismo é um protetor violento, morde-assopra, “por que acreditar, bobona? Apenas aproveite”, o conto-de-fadas envenena desde cedo, o sonho é vassalo do tempo, tubarão astral, a solidão é fada madrinha, peça a proteção dela, meu amor, Alice Holanda quer se rasgar por inteiro, em pedacinhos, vestir pele diferente, abrir a embalagem de uma nova alma, “perdeu a linha”, dirão, “homens há aos montes, mas de que servem se você não souber se servir deles?”, bravo, bruxa, bruxa!, “salve-se, Alice”, surge o caralho alado, como ele consegue falar?, “esse pessoal se leva muito a sério, valoriza demais as próprias dores enquanto caga para as dos outros”, o caralho alado se vai, “volte aqui, volte aqui”, “estou atrasado, estou atrasado”, ele se foi mesmo, ela decide prosseguir a jornada, “aonde me levar, sair da toca”, abre os olhos em desespero, migalhas, migalhas, esfacelada que se sente, assim, ela conhece Emanuel no metrô, simplicidadiva, “sou boa demais, mas ninguém é bom o bastante”, alegra-se, não imaginava que o novo homem fosse assaltá-la, o brutamontes preferiu a bolsa recheada a uma bocetinha chorona, soco na face, ela despenca, não grita, porque não mais se culpa, sente dor nos joelhos ralados, sem dar indícios do crime sofrido, no rosto frieza que se aprende, Alice Holanda retorna ao lar, marido e filha dormem em paz, “bons sonhos!”, a ironia, descobriu de onde vem o seu poder, “banalizei os meus amantes, preciso reinventar os homens”.

Continua na última parte...

Cinemateca do Rafa (1)

De Rafa Lima

7 filmes imperdíveis nada óbvios (em dvd)

. Boa noite, boa sorte
Direção – George Clooney
Como sócio fundador e um dos membros ativos da George Clooney´s most desirable bachelors school quero iniciar a minha cinemateca por um sensacional trabalho de direção e atuação do mestre, atmosfera noir na redação de TV durante a paranóia anticomunista do senador McCarthy, crítica ferrenha à pasmaceira da sociedade recém-televisiva, defesa veemente da liberdade de expressão, análise de diversos níveis de censura social, inclusive a autocensura, combate ao fanatismo com diálogos preciosos, espetáculo para quem sente falta de confrontamento de idéias em tempos de pensamentos fastfood!

. A felicidade não se compra (It´s a wonderful life)
Direção – Frank Capra (1946)
Já pensou em se matar? A sua vida anda um lixo? A proposta existencial dessa tragicomédia romântica fora do comum é imaginar o que seria do mundo se o personagem de James Stewart, um homem de sonhos desfeitos cuja existência só piora, não houvesse vivido além da infância, como mudariam os eventos ao redor, como afetaria àqueles que cruzaram o seu caminho (afetuosamente ou não), não há sentimento de derrota que sobreviva diante da força desse clássico imbatível, tanto amor à vida, tanta vontade de ir além, mas às vezes não dá, ok?, é a vida, o que sobra?, de vez em quando, muito mais. Só melhora. Até hoje, o meu filme favorito.

. Cloverfield
Direção – Matt Reeves/Roteiro – Drew Godard
Filme de ação com inteligência? Quase um paradoxo, atualmente, mas não é o caso aqui, sagacidade boladona, Nova York diante de uma ameaça monstruosa, que na verdade não importa muito, pois o que conta é a linguagem da narrativa, a sobreposição de dois tempos diferentes, o amor e o horror, o ritmo, show de direção, mais um inventivo trabalho do pessoal da Bad Robot (a mesma do seriado Lost).

. Festa de família
Direção – Thomas Vitenberg (1991)
A família ainda é a instituição mais celebrada e defendida da humanidade, aqui vem a facada no coração de nossa civilização, Lars Von Triers que vá se catar, mas nada do que ele fez se compara à obra do companheiro de movimento (o tal do Dogma – nada a ver com o filme do Kevin Smith), duvido que você não se afete de verdade com esse filme aqui.

. E la nave va
Direção – Federico Fellini (1983)
Imagine um Titanic alucinógeno com cantores de ópera, militares, a alta classe, ciganos e um rinoceronte, até aí tudo bem, certo?, mas dê essa receita na mão do Fellini, sonho, delírio, vida? Ridi pagliaccio! Fellini-se, sempre, sempre! Obra-prima, não custa lembrar.

. Amores brutos (Amores perros)
Direção – Alejandro González Iñárritu/Roteiro – Guillermo Arriaga
A mesma dupla depois foi para Hollywood e criou 21 gramas e Babel, mas nenhum dos dois se compara ao dilaceramento proposto por Amores brutos, na verdade, amores cães, é uma porrada atrás da outra, e nós, hipnotizados, vemos o erro enquanto guia tirar cada uma das pétalas do sonho de uma vida feliz comum, seja a dois, seja em família, como os cães aqui as pessoas devoram porque a mordida vem de dentro, fodaço!

. Além da linha vermelha (The thin red line)
Direção – Terrence Malick (1998)
Ao contrário dos manjados filmes de guerra onde a ação é determinate, a batalha entre americanos e japoneses em Guadalcanal durante a Segunda Guerra não interessa tanto quanto o que se passa na mente dos soldados, anseios, medos, revoltas, total incerteza, subjugados ao acaso de missões de propósito duvidoso, aqui conta o elemento humano acima de tudo, a guerra enquanto entidade sem bandeira, sem lados, que devora o que vem pela frente e desperta a maldade humana, autopreservação pela autodestruição, a descrença distribuída no lugar da água que falta, exceto na relação sensorial de libertação quase espiritual com o ambiente ao redor despertada no soldado Witt, filmaço, uma borboleta azul no meio do pelotão que avança amedrontado, elencão, Jim Caviezel (Witt), Sean Penn, Nick Nolte, Ben Chaplin, Elias Koteas, John Cusack, Woody Harrelson, Adrien Brody, John C. Reilly, Jared Leto, com participações de John Travolta e no finzinho do mestre George Clooney, para quem gosta de cinema mais do que a maioria e aprecia (porque melhor na tela do que na vida) filmes de guerra (com sensibilidade e inteligência).

... Qual filme você gostaria de ver comentado? Em breve, mais Cinemateca do Rafa.

Futebolé (1) – Comentários irônicos

De Rafa Lima

Perguntar ofende

1- Qual é a semelhança entre a Copa SULAMIRANDAamericama e a baranga? Dá um pouco de vergonha ganhar qualquer uma das duas.

2- Que tal mudar o nome dos programas esportivos da TV aberta para Diário do Corinthians e não encher mais o saco? Aí, eu já sei que não é para ver, “tá me tirando, meu?”.

3- Campeonato brasileiro por pontos corridos é igual aos emos, só tem a ver com paulista. (Já previ, Rafa Mcfly, Palmeiras é o campeão de 2008, já, já, o Grêmio peida).

4- Você acredita que o Botafogo chega ao título brasileiro em 2008? Acreditou também que o padre dos balões conseguiria chegar a salvo? (Aonde ele ia mesmo?).

5- O que esperar de uma seleção brasileira treinada por um cara com nome de anão surdo-mudo? Que ao menos a África do Sul seja a nossa Branca de Neve (sem apartheid).

6- Já pensou? Fluminense rebaixado, Flamengo em quinto e Edmundo na cadeia? O futebol carioca está precisando de moral de novo. O Caixa d´água está se revirando no túmulo, aliás, Jabba the Eurico já morreu?

Parte 5 do conto Meu bebê

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... lembra-se e amaldiçoa o efeito das palavras de Tchuco, o vocalista carismático, quase messiânico, do maior fenômeno fonográfico dos últimos anos, a banda Sêmen THC, na última entrevista que o ídolo da juventude concedeu antes de desaparecer, “a maioria das mulheres que conheço não se libertou da opressão social com que foi educada e por essa razão ainda utiliza o sexo como substituto à tristeza”, assim uma explosão de novidade foi ouvida dentro da então esposinha resignada (quantas mudanças!), mas afinal de contas o que astros do Rock sabem sobre a vida?, no caso de Alice Holanda, o bastante.

Continua...

Parte 5

O marido ri com a televisão, sempre assim, chega do emprego, vai ver a menina e depois se entope de comida na companhia dos programas mais imbecis de nossa era (não falem mal da TV, ok?, ou vai rolar carnificina), “querida, também tenho o direito de me divertir de vez em quando”, como é possível sentir tamanha sensação de indiferença pelo ser anteriormente mais-amado-de-todos?, agora, quase nem amado, mais hábito do que amor, “um idiota de terno e gravata não deixa de ser um idiota. Apenas torna cúmplices de sua idiotia aqueles que dão credibilidade ao que ele parece”, Alice Holanda, fúria em silêncio, a gravidez não veio novamente, prestes a implodir, já não se atreve a voltar ao amante galáxico, se os dois ainda juntos ele ironizaria com voz robótica, “my mind is going, Dave... my mind is going...”, ela ficaria exultante por reconhecer a referência do século passado recém adquirida, de repente, tão mais inteligente!, “me amarrei nesse tal de Kubrick por sua causa”, ela riria sem culpa, mas de que adianta?, a gargalhada de Juninho a resgata da lembrança do passeio além de Saturno, Alice Holanda não se dá conta de que se afasta do marido por invejar a relação ultracarinhosa entre ele e a filha, ele canta para a menina, dorme com ela sobre o tórax para despertar babado, dá banho, nada com ela peladinha na piscina, “lindinha demais, você precisava ver, querida, a Clarissa adorou a água”, troca as fraldas, prepara a mamadeira, calcula a temperatura da comidinha para que a princesinha não se queime, sempre que pode dispensa as babás, repete palavras e mais palavras para que a belezoca se acostume logo com a linguagem, “mamãe”, “papai”, “Cla-ri-ssa”, “Cla-ri-ssa”, “Clarissa”, “leão”, “papinha”, “São Paulo”, “São Pau-lo”, “tricolor”, “amizade”, “coragem”, “mamãe”, “papai”, “teoria econômica”, ele ri baixinho sem a atenção da esposa, “oh, tricolor, ô, ô, ô, ô”, empolga-se, “clube bem amado!”, “pára com isso, Juninho!”, “não se irrite, fofinha”, ela se irrita, “fofinha?”, não tem jeito, não se controla o descrédito, ela quer fugir dali, por que as decisões da vida são tão categóricas?, “raramente, passam por nosso direito de escolha”, tem certeza?, que sacanagem, parece ironia mas Clarissa só golfa o alimento sobre a mãe, mamãe-vômito, mamãe-baldinho, provocação?, mas como é possível?, a menina não tem consciência ainda, ou atos não precisam de consciência, são escolhas primitivas?, “estou ficando doida nessa casa”, reprime o grito, “vou sair, Juninho”, “a essa hora? Vai começar o jornal”, “preciso de ar”, “aonde vai?”, “só tomar um ar, não me espere acordado”, “vai demorar?”, “não sei”, “o que está acontecendo, querida?”, “nada”, “nada?”, “nada”, nada está acontecendo como sempre, o marido baixa os olhos, escolhe as palavras, prepara-se para o que vier, vai, vai, vai, “você tem outro?”, Alice Holanda se espanta, hesita, “não tenho mais ninguém, nem a mim mesma”, Juninho concorda, Clarissa abre o berreiro, marido e mulher trocam olhares como se não existisse o resto do mundo, há quanto tempo!, momento perecível de eternidade, silêncio-nostalgia, ela se embaraça, ruboriza-se, corta a conexão, ele aceita a condição, “bom passeio, querida”, mas bem que poderia ser “ainda amo você, menina” ou “vê se não enche a porra do saco!”, múltipla escolha.

Continua na penúltima parte...

Parte 4 do conto Meu bebê

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... “marido?”, “sim, menino, está com medinho?”, “você tem marido e quer ficar grávida de outro? Está louca?”, “o filho é meu, o pai não interessa mais”, “que absurdo!”, “será?”, “é melhor você ir embora!”, ela se enfurece, “você não se cansa de pensar sempre as mesmas coisas?”, “que papo é esse? Não somos nada um do outro. Vamos nos comportar como se nada tivesse acontecido, ok?”, quanta decepção Alice Holanda guarda em seu íntimo pelos homens, “meninos, meninos, sempre tão meninos!”, veja, Wendy, é o Capitão Gancho, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha.

Continua...

Parte 4

Nem todos! (Existem os que fingem bem), Alice Holanda encontra um homem, nada menino, terceiro amante, tempo, agora, amigo e cúmplice, “os animais castrados são mais calmos, vide a religião”, ele ri do próprio comentário com gosto, ela se diverte com a auto-suficiência do novo sujeito objeto de observação que segura a coleira do animal a quem a mulher acaricia, “muito bonito o seu amigão aqui”, “obrigado”, “gosta de cachorros?”, “cada vez mais”, ele percebe a sutileza da provocação, cérebrão, cérebrão, cara ligado nos sinais femininos, “mora aqui perto?”, “sim e você?”, “também. Como é o seu nome?”, “Alice e o seu?”, “Lewis Carrol”, ele ri de si mesmo, ela não entende, “como?”, “brincadeira, eu me chamo Liam”, “nome inglês?”, “pois é, meu pai”, “mãe brasileira?”, “oh! Yeah! Mas nasci aqui, sou fã do Cartola”, “que bacana! Adoro misturar culturas”, “verdade?”, “pois é”, “Alice, quer tomar um suco ali na esquina comigo e com o Paul?”, ela se empolga, “adoraria”, Alice Holanda se interessa mais e mais por ele ao folhear livros retirados da estante do homem solteiro a quem conheceu na rua e ler diversas partes sublinhadas com caneta marca-texto verde fosforescente, “quem é Salman Rushdie? Como quero conhecer mais”, cada frase que Alice Holanda percebe em destaque corresponde a uma flechada romântica involuntária, “quantos livros! Ninguém tem tempo de ler tanto assim. Para que servirão?”, (fogueiras? Uma fogueira de livros pode queimar muitas bruxas), a sala do apartamento quase não tem móveis, só um sofá e estantes com livros, “como é possível um europeu ser tão desapegado?”, Alice Holanda está viciada nas substâncias químicas que o organismo produz em larga escala durante o período inicial de uma nova paixão, “ih, danou-se!”, ele a pega pela mão, carinho, ele a afasta do ressentimento que silenciosamente cresce por dentro, ele desmonta a dor de menina mimada sempre acostumada a ter tudo à disposição, puxa isso aqui, bota ali, mistura um pouco cá e acolá, agita, aquece, lubrifica, então, a alma molhadinha, existência ressignificada, que delícia de expedição, exploradores da pirâmide do ego, “bom demais, como ele me entende”, mais Alice! do que nunca, ele conhece a insatisfação dela, ela quer ser gente, gentona, quer ser admirada e quer ser vida, vida-além, “vem reinventar a felicidade, vem comigo, Alice”, estou atrasado, estou atrasado, descem pela toca do coelho, o sorriso, o gato, o chá com o chapeleiro louco, a disputa com a rainha de copas, o gozo, zero vírgula zero zero zero um do simulacro rascunhado da amostra grátis do todo-universo, aquele por falta de melhor nomenclatura chamado de divino, ela, constelação, ele, cometa, “faz um filho em mim”, “faço”, ela se espanta, “faz?”, “faço”, tempestade cósmica, “grande demais, grande demais!”, implosão, a morte de uma estrela, tempo, tempo, tempo, o tombo do tempo, que impacto!, o gigante também cai mas o ser humano não vê, ela foge do amante galáxico, porque tem medo de nunca retornar à Terra, como tudo aconteceu tão rapidamente?, cosmonauta?, de tal forma que se perdeu de si mesma, “por que me reafirmo enquanto existência através do sentimento pelos homens?”, quer se convencer de que prefere as sensações calculadas, pés no chão, que divide com o marido ou os amantes sexuais, mais convenientes, cálculo básico, Alice Holanda (foge da Alice) corre pelas ruas em lágrimas porque quer extirpar o amor de tantas dimensões por aquele homem-Júpiter!, “pára, mundo, pára de girar!”, mas o planeta não dá ouvidos a ninguém, Alice Holanda, além da anestesia do cotidiano, esqueceu-se das regras de comportamento moral, “estou intoxicada de sentir, mas não era isso que eu queria? Não, quero um filho!”, lembra-se e amaldiçoa o efeito das palavras de Tchuco, o vocalista carismático, quase messiânico, do maior fenômeno fonográfico dos últimos anos, a banda Sêmen THC, na última entrevista que o ídolo da juventude concedeu antes de desaparecer, “a maioria das mulheres que conheço não se libertou da opressão social com que foi educada e por essa razão ainda utiliza o sexo como substituto à tristeza”, assim uma explosão de novidade foi ouvida dentro da então esposinha resignada (quantas mudanças!), mas afinal de contas o que astros do Rock sabem sobre a vida?, no caso de Alice Holanda, o bastante.

Continua...

Parte 3 do conto Meu bebê

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... Alice com gosto de Alice, viva, serelepe, colore um arco-íris interior, sorri para o céu, sorri para a chuva, sorri para o mendigo, quanta euforia!, quanta euforia!, quanta euforia!, gozar e sorrir, nada realmente importa!, “tão bom viver desse jeito”, mas, tempo, tubarão, mordida que não se vê até que dilacera, três meses, nada de gravidez, percebe-se apaixonada para valer, dependente, “é a hora de partir, não quero!, não quero! Mas tem de ser assim”, rapidim, esforça-se, tratamento de choque, “arranca, arranca, tira isso de mim!”, chora em segredo e desaparece da vida dele sem deixar vestígio, decepa-o de dentro de si antes que tudo esteja perdido, bruxa?

Continua...

Parte 3

Alice Holanda volta a malhar, a correr, a pedalar, viciada de novo em endorfina, a sentir-se gostosa, a usar roupa colada, até aprendeu a se masturbar sem se sentir culpada depois, “ai, ai, bom demais!”, em busca de oscilações de prazer, “não quero mais me submeter à disciplina militar do ser constante”, quer conversar com as amigas mas esbarra no decoro das mães de família, “como pude me tornar tão politicamente correta?”, o cotidiano enquanto clínica ginecológica dos princípios, portanto, o segundo amante, um gigante, um Atlas, músculos de estátua grega, arquétipo que lubrifica certas mulheres entre as pernas, “me ajuda a treinar?”, “é claro!”, o ser humano é hilário, o ato de suar a dois cria uma estranha cumplicidade entre as pessoas, dois meses depois do início do treinamento, eles se beijam no meio da rua, sob a iluminação do letreiro de uma loja de eletrodomésticos, “quer ir lá para casa?”, “você mora sozinho?”, “com a minha mãe, mas a essa hora ela está vendo todas as novelas possíveis para compensar a desistência de novas idéias”, os dois riem, a princípio, Lolo parecia um clichezão de jovem esportista, mas logo demonstrou inteligência, senso de humor e bom gosto, pouco a pouco, desabou o estereótipo, bom demais mergulhar nas profundezas da intimidade alheia, bom demais depois do enrijecimento do dia-a-dia resgatar a sensação de namoradinhos juvenis, “vamos, eu também quero”, Alice Holanda devora o atleta, ele fala sacanagens no ouvido dela, faz com que se sinta suja, divertidamente suja, sem mistificações, inteiramente em plano terreno, ela, em busca de paixões tão intensas que a pornografia se envergonha, “mete, seu safado, mete”, ele se exibe, banca o equilibrista de espetáculo circense para impressioná-la, mas a alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo!, “me engravida”, o equilibrista despenca através do ar, “o quê?”, o homem-bala dispara contra a lei da gravidade, ou da gravidez?, de repente, o gozo vem fora, morno na pele dela, o equilibrista cai na rede de segurança, “por que você tirou?”, “ficou maluca? Eu não quero filho, não!”, “idiota, agora preciso me lavar para que o meu marido não descubra”, “marido?”, “sim, menino, está com medinho?”, “você tem marido e quer ficar grávida de outro? Está louca?”, “o filho é meu, o pai não interessa mais”, “que absurdo!”, “será?”, “é melhor você ir embora!”, ela se enfurece, “você não se cansa de pensar sempre as mesmas coisas?”, “que papo é esse? Não somos nada um do outro. Vamos nos comportar como se nada tivesse acontecido, ok?”, quanta decepção Alice Holanda guarda em seu íntimo pelos homens, “meninos, meninos, sempre tão meninos!”, veja, Wendy, é o Capitão Gancho, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha.

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Trecho 3 do romance O pervertido

De Rafa Lima

O delírio de fazer a cidade ficar grávida (Partes 27-28)

27.

O pervertido tem as horas de Sol da sexta-feira livres para refletir. Sente-se estranho pelo excesso de leveza. Tamanhas são a entrega e a confiança que tem na namorada que afinal optou por abrir mão de todo o talento para a promiscuidade e da capacidade de com pouquíssimas palavras possuir mulheres e mais mulheres de diferentes tipos, gostos e cores. É hora de explorar até as mais longínquas fronteiras do novo mundo descoberto em sua mente. Quem inventou Gina? Como são possíveis tantas delícias reunidas? Dias depois do último e quer acreditar que definitivo encontro clandestino com tia Leila, ele caminha no parapeito da cobertura do prédio mais alto da cidade. Não pretende pular. Ao contrário, supõe que agora sabe voar. Não há ninguém por perto. A não ser um homem de terno preto, gravata vermelha e (o que está acontecendo?) salto-alto cor-de-rosa que rapidamente se aproxima.
“O que foi? A minha presença atrapalha?”, questiona o indivíduo-surpresa. “Cuidado para não cair daí”.
“De onde eu conheço você?”, esforça-se para lembrar o pervertido.
“De um lugar onde a chuva é feita de cerveja”.
O pervertido se confunde.
“Você só se sente feliz com o que é óbvio”, prossegue o sujeito. “Por que não tenta novas formas de ver o mundo?”.
“O que acha que estou fazendo aqui?”, reage o pervertido de maneira defensiva. “Nos últimos meses, tentar novas formas de ver o mundo é tudo o que tenho feito”.
“Tem certeza?”.
Os dois se silenciam por um instante.
“Como se forja um espírito amoroso em um homem na violenta, banalizada e frenética sociedade contemporânea?”, questiona de repente o cara esquisito. “Já disse, cuidado para não cair lá embaixo!”.

Parte 2 do conto Meu bebê

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... Além disso, você teve uma gravidez perigosa. Sei que está ansiosa em ter mais um filho. Mas não será melhor agora irmos com calma nesse assunto e nos concentrarmos na Clarissa?”, mais uma resposta negativa do marido!, mofoder, “está bem”, Alice Holanda finge aquiescer enquanto pensa: “Até parece! Cuida você dela e daquelas olheiras profundas!”.

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Parte 2

Agir, “amargurada pessoa de bem, fortaleza moral cheia de infiltrações causadas por tudo aquilo que teve de batalhar, negociar, abrir mão para se tornar quem é hoje, amargurada pessoa de bem”, “nem todas, minha amiga, nem todas são assim”, “medo, falta, perda, algo mais? Algo novo!”, agir, preparem as suas fogueiras!, ela é uma bruxa!, não há mais como esconder de que Alice Holanda quer fazer isso, sim, sim, sim, cuidado com ela!, muito cuidado com ela!, depois de tanto tempo encontra um novo eleito, a escolha se baseia em atração física combinada com a idealização que ela faz do rapaz através das revistas e livros que ele lê à mesa do café literário mais as roupas que ele veste, ela adora camisetas listradas!, códigos e mais códigos que não passam despercebidos aos olhos dela, sempre à hora do almoço, as duas solitudes ali se esbarram sem estardalhaço, observou-o em silêncio durante dias, descobriu uma rotina nos passos dele, até o seguiu pelas ruas, “caramba, sempre sozinho!”, planejou tudo, para a fogueira com ela!, tantas elucubrações insones que quase despertaram o marido empanturrado, paixonite, paixonite, o lugar ideal!, agora, difícil é a aproximação, que baita cara-de-pau, mas que fique claro que é ela quem manda, portanto, apenas lança o desafio, “olá”, “oi”, com sorriso, “ele é uma graça!”, ela pensa de perto, “em um dos próximos dez dias, vou voltar aqui. Nunca fiz isso. Nunca pensei que pudesse ser correto. Mas agora eu quero! Se você estiver aqui a essa hora da próxima vez em que eu entrar nessa cafeteria, vou com você ao lugar que escolher. Está a fim?”, ele, olhos arregalados, boca seca, sensação de armadilha, “é claro!”, novo sorriso, ela bate as asas, fadinha fodinha, e voa para longe, “homens, mesmo os mais inteligentes ou os mais bonitos, são tão previsíveis na dependência do desejo”, no sétimo dia, Alice reaparece, queimem-na!, queimem-na!, “vamos embora rápido!”, Leonardo, nada bobo, obedece, “casada?”, “isso importa?”, “nem um pouco”, ele desconfia, mas se submete, um motel à tarde em dia de semana, enquanto a massa trabalhadora se empenha em ganhar a sobrevivência, gerando lucro a uma microminoria que pode se dar ao luxo de freqüentar motéis à tarde em dias de semana, enquanto a massa trabalhadora lentamente se fode! Pelo menos assim se parece aos olhos de Alice Holanda. Depois de usufruir do amante-oásis, simulacro de liberdade, ela mesma!, “delícia, me morde, lindo, me beija”, quantos carinhos, o marido se torna tão enfadonho!, “chato, Juninho, chato!”, “o que eu fiz?”, “é exatamente o que você não fez”, “você, às vezes, é tão injusta comigo”, “sou?”, ela sabe que é!, mas não assume, “para quê? Para ele se achar mais perfeito ainda?”, reprime a sinceridade e devolve a raiva que sente causada pela constante falta de interesse a que o marido sequer se dá ao trabalho de esconder, mofoder, “aonde foram parar os bons tempos quando a gente se amava muito, mas muito, mas muito mesmo, da maneira mais simples de todas?”, ele se cala, internaliza como sempre, a filha começa a chorar de novo, só atrapalha, “deixa que eu vou”, surpreende a esposa, Clarissa de olheiras profundas causa vertigens à mãe, o bebêmenina a ofende mais e mais a cada dia que passa!, após novos encontros clandestinos com o amante, Alice goza, goza, goza, “por que gozar tanto assim? Deve estar desregulada”, “ah, você é sempre tão irônico!”, riem juntos, Alice, não mais apenas Alice Holanda, Alice!, Alice com gosto de Alice, viva, serelepe, colore um arco-íris interior, sorri para o céu, sorri para a chuva, sorri para o mendigo, quanta euforia!, quanta euforia!, quanta euforia!, gozar e sorrir, nada realmente importa!, “tão bom viver desse jeito”, mas, tempo, tubarão, mordida que não se vê até que dilacera, três meses, nada de gravidez, percebe-se apaixonada para valer, dependente, “é a hora de partir, não quero!, não quero! Mas tem de ser assim”, rapidim, esforça-se, tratamento de choque, “arranca, arranca, tira isso de mim!”, chora em segredo e desaparece da vida dele sem deixar vestígio, decepa-o de dentro de si antes que tudo esteja perdido, bruxa?

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Parte 1 do conto Meu bebê

De Rafa Lima

O quebra-cabeças da vida de Alice Holanda parece montado!, pronto-pronto como sempre se imaginou, de madrugada, enquanto o bem sucedido, boa gente, carinhoso, um pouco mais alcoólatra e barrigudo do que quando se conheceram e supostamente fiel marido dorme de pança cheia, oh, que maridão Alice Holanda encontrou para si, macho alfa dominador clássico, um homem que sabe se impor e ainda um experiente jogador de pôquer, ela pensa nas escolhas que o movimento natural da existência tomou por ela, casamento, emprego bem remunerado, acesso livre aos bens de consumo, à vida social, às pessoas e aos seus clubinhos existenciais particulares, contas e mais contas, o tédio, os sapos engolidos nos conflitos diários ou enfiados rabo adentro sem gel, a perda parcial e silenciosa do desejo sexual pelo homem amado, os amigos de sempre, os eventos de sempre, as novelas, os seriados e as comédias românticas de sempre, os sempres de sempre! E mais agora! Ela! Há dois anos, Alice Holanda deu à luz Clarissa, a primeira filha do casal, mas Alice Holanda, embora disfarce diante do marido, não esconde de si mesma a frustração que sente, não queria uma menina!, que idéia ridícula!, nunca quis, “as mulheres são muito falsas, dissimuladas e dependentes”, há tempos Alice Holanda imaginara que seria mãe de um rapagão bem apessoado, modelo de saúde, que se tornaria médico, advogado, economista, empresário ou jornalista, ou de um atleta olímpico que serviria de exemplo para a criançada, ou de um escritor sensível embora crápula que usaria o próprio talento com as palavras para seduzir centenas de mulheres, ou de um astrofísico renomado que ganharia o Prêmio Nobel, não importavam mais as antecipações que fizera contanto que fosse mãe de um menino!, “um menino, entendeu bem?”, rói-se em seu diálogo interior imaginário com o Criador da Luz, do Caos e dos espaços in-between (entre-espaços) onde se encontram os intelectuais, os roqueiros ou as drag queens, “além do mais, essa menina é muito estranha! Eu nunca tinha visto um bebê com olheiras desse tamanho!”. Alice Holanda imagina as olheiras como o símbolo de uma vida cheia de profundas questões, amores, reviravoltas, escolhas, vitórias redentoras, derrotas dilacerantes, mas vivas e pulsantes ao extremo. Sob a ótica da genitora, as olheiras do bebêmenina representam a promessa de uma existência plena movida pela rebeldia de uma pessoa preenchida pela impressão de vontade própria (por mais ilusória que possa parecer). Em silêncio, desde já, Alice holanda inveja a filha, porque desconfia de que um futuro grandioso aguarde Clarissa, muito mais interessante, intenso e livre do que o cotidiano em que a mãe se encontra acorrentada, cravado!, decide-se, ao ataque, pé-de-cabra emocional em mãos para arrombar a barreira da estagnação, “ei, Juninho, acorda!”, “o que houve, Alice? Aconteceu alguma coisa?”, “nada demais. Só quero pedir algo para você!”, “ah, Alice! Está de brincadeira? Eu estava dormindo. Trabalho amanhã cedo. Até parece que você não sabe disso. A Clarissa já está dando o maior cansaço. Agora, você também?”, “pára de drama, Juninho! Quero pedir algo bom! Muito bom!”, “é mesmo? O quê?”, “me come de um jeito que você nunca comeu antes!”, “hein?”, “me come de um jeito que você nunca comeu antes e faz um filho em mim!”, o homem acostumado a mandar se espanta, treme, corre dali, sim, sim, sim, corre dali para não arrancar os cabelos que ainda não caíram, quando percebe a grandeza da fêmea que silenciosamente o domina, “o que deu em você, Alice?”, “estou buscando novas formas de reconquistar a alegria de viver”, “mais do que já temos?”, “mais!”, “mais?”, “mais! Estou falando de novas motivações, Juninho!”, “desculpe, amor! Estou quebrado e o meu estômago está me matando. Além disso, você teve uma gravidez perigosa. Sei que está ansiosa em ter mais um filho. Mas não será melhor agora irmos com calma nesse assunto e nos concentrarmos na Clarissa?”, mais uma resposta negativa do marido!, mofoder, “está bem”, Alice Holanda finge aquiescer enquanto pensa: “Até parece! Cuida você dela e daquelas olheiras profundas!”.

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Fotos da peça Coleção de Centauros





























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