Parte 3 do conto Matadouro das virtudes

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... Tchuco, desalmado, Tchuco, fodido porque longe demais de qualquer outro ser, Tchuco, privado da grandeza da simplicidade, Tchuco, privada de toda essa merda de controle do comportamento social através da alegria artificial gerada por uma banda de dimensões megalomaníacas, Tchuco, doente, muito doente da cabeça, Tchuco, Deus!, Tchuco, deus!, Tchuco?
“Que porra de doença é essa, seu psicólogo filho da puta? Não faltava inventar mais nada? Sabe quem eu sou? Esse é mesmo o seu diagnóstico?”.

Continua na matadora parte final...

Parte 3 (Final)

Ginecofobia, dá-lhe!, isso sim, tem noção?, ginecofobia, que loucura, os jornalistas deliraram de prazer, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, quando souberam dias depois por um misterioso informante cuja voz ao telefone muito se assemelhava à do guitarrista do próprio grupo Sêmen THC, Horácio, quem poderia imaginar?, ginecofobia, um astro de tamanha magnitude reduzido à humilhação pública, à galhofa nos bares da cidade, clubes noturnos, inferninhos, colunas sociais, programas televisivos, em toda a parte a palavra da moda era ginecofobia, em toda a parte o infortúnio do talentoso artista fomentava discussões acaloradas tanto entre leigos quanto entre especialistas, quem diria, hein?, que coisa meiga!, que flor campestre!, viadinho, pula, viadinho!, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, ginecofobia, pavor das mulheres. Cai dentro, cai fora, cai dentro, cai fora, cai?
“Por que para algumas dessas doidas o sexo funciona como um substituto à tristeza?”, o carro conversível preto, 144 quilômetros por hora! “Falta pouco. Falta pouquíssimo!”. Pensa no machado e trinca os dentes.
Rock’n’roll é o nome dado à mistura de melancolia transcendental com raiva dançante. Tchuco estaciona o veículo no acostamento da rodovia em um ponto longínquo, área rural cercada por fazendas. Tem início o passeio no carrossel espacial-temporal. Ele abre o porta-malas do automóvel e retira a ferramenta com que abre passagem com facilidade através da cerca de arame. Retorna ao carro, guarda o objeto e, glória psicótica!, maravilha maníaca!, empunha o machado. Tânatos é o nome com que Tchuco o batizou. Fecha o porta-malas e invade a passos largos a fazenda em companhia do novo melhor amigo, enquanto a noite se aproxima. Quem pensa que a subida é o que há de bom e a descida é a parte infeliz da vida nunca andou de montanha-russa, nunca brincou de carrinho de rolimã, nunca se entregou ao fascínio por uma cada vez mais decadente banda de Rock, nunca se lançou em uma paixão irracional, doentia porque bem-vinda.
Anda. Anda. Anda. Conversa com Tânatos.
Afinal, aqui estão elas, ninguém por perto!, aqui estão elas, impassíveis, indiferentes às questões de existência e aos conflitos psicológicos, aqui estão elas, que animais fascinantes, quanta carne!, quanto desperdício da natureza!, aqui estão elas com seus olhares imbecis, nada misteriosos, como o de alguém que pratica sexo sem o menor desejo mas tenta esconder, olhos vazios, passivos, como o de uma população inteira submissa e acovardada diante de alguma arbitrariedade do governo, bovinos porque melhor assim, aqui estão elas outrora sagradas, as vacas!
Treze!
“Eu exijo uma vida melhor!”, berra Tchuco diante dos animais.
Ele espera uma resposta em palavras ou mugidos, mas nada acontece.
Num instante, o grito! Tânatos cai brilhante sobre uma, duas, três delas com vigor destrutivo, fazendo com que as dez restantes com passos desengonçados fujam, porque vacas mas não totalmente idiotas. Tânatos sobre as três condenadas, ferindo-lhes o corpanzil malhado em diversas partes, esguichando sangue em excesso sobre o astro da carnificina que em catártico movimento de fúria ataca repetidas e repetidas vezes e mais algumas, mais umazinha só, agora, agora, os animais indefesos tombados sobre o solo. Aço que corta o couro. Vontade que dilacera o sentido de qualquer vida. Quer muito mais! Ataca! Ataca! Ataca! Repete! Ataca! Tânatos sobre as vacas, vermelho como a menstruação da terra.
“Morre! Morre, por favor! Morre logo!”.
Tchuco sente com as pontas dos dedos da mão livre do machado o rosto colorido de sangue. Prova o gosto. Reencontra a idéia de uma alma própria, definida em princípios pessoais. Enfim, chora. Chora, seu puto, chora! De onde vem tanta raiva não sabe, mas sente que em parte as promessas são sempre falsas, porque nunca se realizam como se espera.
De repente, o som do tiro! A bala passa zunindo junto ao astro que com o susto deixa o machado cair. Tchuco avista dois homens armados correndo em sua direção a muitos metros de distância. “Fodeu!”, corre, vai, corre, porra!, outro estampido de arma de fogo, “caralho, essa passou perto!”, corre, corre, corre, seu puto, tiro, tiro, tiro, errou, errou, errou, nada é capaz de acertá-lo, é um deus!, corre, deus!, corre, mais um tiro!, afinal, cruza a passagem na cerca, alcançando a rodovia, e atira-se dentro do carro preto conversível, o banco está cheio de sangue, “foda-se!”, com a mão trêmula, dá a partida no motor e acelera de zero a cem quilômetros em quatro segundos, chora por estar vivo, chora por excesso de tensão, chora por estar aliviado por matar umas vaquinhas de olhos vazios como os dele, chora porque Tânatos ficou para trás.
Dias depois, Tchuco raspa o cabelo, muda-se para uma região distante dos bairros badalados, onde espera não ser reconhecido sob a nova aparência, e arruma um emprego. No novo ambiente de trabalho ninguém conhece a banda Sêmen THC. O avental sujo de sangue lhe causa bem-estar. O som do local é de um terror poético. O dono do matadouro se espanta com o empenho do novo funcionário, afinal, os jovens não gostam de trabalhar, os jovens só querem saber de diversão!

Fim?

Parte 2 do conto Matadouro das virtudes

De Rafa Lima

No capítulo anterior

... Entretanto, aos amigos o astro do Rock se dizia entregue ao sentimento por Ella e rasgava-se em declarações de amor à beldade-mocinha de desejos ensimesmados embora ingênuos que ansiava pela chance de um dia interpretar nos palcos a Ofélia de Shakespeare e aquela do Molière, que como ela costuma afirmar “é um presente para uma atriz”, embora não se lembre do nome da personagem. Que casal! Ah, papparazo! Que casal!

Continua...

Parte 2

Assim, casaram-se logo depois em cerimônia restrita a amigos, causando rebuliço no setor da imprensa voltado ao sensacionalismo, e viveram semanas de paixão cinematográfica que não tardou em se esfacelar. Assim, Ella conheceu o egomonstro devorador de sutilezas cotidianas e Tchuco descobriu a princesa mofada. De madrugadas às manhãs seguintes perdidas, cozinhavam-se em convenções de comportamento padrão. Até que em uma noite de calor em que Ella Benarrivo cavalgava o cacete mediano e grosso de Tchuco com prazer repetitivo e quase já dispensável, afinal, ela não considerava o ato sexual tão empolgante, “parece ginástica sem roupa e com lubrificação”, refletia a pequena múmia, o marido começou a pensar em comida durante o coito e tomado pela súbita vontade de devorar um sanduíche de filé de carne bovina com uma rodela de abacaxi arremessou a esposa para fora da cama, derrubando-a ao chão com brutalidade, levantou-se, vestiu-se diante do olhar de estupefação da mulher rejeitada e retirou-se sem dizer nada.
“Aonde você vai, seu estúpido?”, gritou ela sem conseguir uma resposta, irritando-se pois não foi capaz de agir naquele momento como Ella, que em momentos menos reluzentes teria partido para esbofetear a cara do escroto diante de tamanhos desrespeito e decepção.
Três raquíticos meses de ilusão! O matrimônio entre semelhantes personalidades do mundo do entretenimento durou singelos três meses e chegou ao fim pela violência causada pela falta que faz um sanduíche de filé de carne bovina com uma rodela de abacaxi! Não houve jeito! Tiveram que conhecer novos amigos, os advogados.
“Ele é um maníaco!”, declarou posteriormente Ella Benarrivo do alto de sua loirice pernóstica e embutida de um princípio silencioso de fascismo, embora sem maldade, só com arrogância, em entrevista exclusiva a um socialmente respeitado programa de fofocas que entretém donas de casa, garotas de programa, desempregados e escritores durante a tarde. “Depois de uma hora ao meu lado, onde quer que a gente estivesse, Tchuco me expulsava, mesmo quando nos encontrávamos em meu apartamento! No meu apartamento! Dá para acreditar?”.
“Que absurdo!”, indignou-se a sempre-sempre nobilíssima apresentadora do programa. “Não é o primeiro caso de violência em que Tchuco se envolve! Depois de todo o carinho que as meninas desse país deram a ele. Sem as mulheres, esse rapaz não seria ninguém! Ele precisa urgentemente de tratamento psicológico!”.
A banda entrou em crise por causa do escândalo.
“Vá se foder, Vincent! Os seus conselhos não dão mais certo! Aliás, todos vocês estão querendo acabar com o que eu conquistei, porque eu sempre fui maior! Fora da minha vida, seus parasitas!”, explodiu Tchuco.
“O que é isso, putão? Somos amigos há tanto tempo!”, contemporizou Horácio.
“É isso mesmo. Calma, cara. Nós amamos você”, completou Canhoto.
“Hipócritas! Parasitas! Só pensam em foder menininhas e em ficar alucinados! Eu sou a banda! Estou falando de grandeza, seus animais! Grandeza universal! Eterna! Histórica! Por causa da insegurança e falta de visão de vocês, estou caindo! Estão me puxando para baixo”.
“Vá tomar no cu, Tchuco!”, reagiu Horácio com energia. “Está delirando!”.
“É isso mesmo. Calma, cara. Nós amamos você”, repetiu Canhoto. “Caraca, estou muito louco!”.
“A contagem regressiva está chegando ao fim, seus tolos!”, de repente, interveio Vincent Casablancas, o empresário. “Desse jeito, vocês não duram nem mais uma semana. Vão viver para sempre na sombra do que um dia foram!”.
{O que é o fim?}.
Tchuco desapareceu por dias. Shows foram cancelados. Fuga número vinte e dois para piano, guitarra e quarteto de violinos. Trancou-se na impossibilidade de encontrar alguém que sentisse o mesmo medo mórbido que ele e deixou o mundo do lado de fora, ligação direta à solidificação interior de incomum patologia.
“É ele! É ele! É o Tchuco!”. Disfarce revelado! Mais gritos, choros, que berreiro, nova correria, mais um pandemônio!
“Chega dessa perseguição, suas loucas carentes! Vão procurar homens reais! Eu não existo para vocês. Sou apenas uma idéia!”.
A paixão de outrora pela busca do ideal de mulher, a bocetinha pensante, sonhadora e pervertida, fora atropelada por um trem cuja carga transportava caixas com raiva, ceticismo e cansaço. Daí em diante, o processo de corrosão ganhou velocidade até que Tchuco se viu diante do próprio reflexo no lago onde se afogam sonhos e vislumbrou uma entidade humana cuja idealização sentimental conhecida como alma fora extirpada. Tchuco, desalmado, Tchuco, fodido porque longe demais de qualquer outro ser, Tchuco, privado da grandeza da simplicidade, Tchuco, privada de toda essa merda de controle do comportamento social através da alegria artificial gerada por uma banda de dimensões megalomaníacas, Tchuco, doente, muito doente da cabeça, Tchuco, Deus!, Tchuco, deus!, Tchuco?
“Que porra de doença é essa, seu psicólogo filho da puta? Não faltava inventar mais nada? Sabe quem eu sou? Esse é mesmo o seu diagnóstico?”.

Continua na matadora parte final...

Parte 1 do conto Matadouro das virtudes

De Rafa Lima

“É ele! É ele!”. Gritaria, uma histeria absurda, flashes fotográficos em exagero, correria, confusão, seguranças, barreiras policiais para deter mulheres desesperadas, meninas adolescentes sonhando em perder a virgindade, em dar umazinha ou em casar com o astro e homens invejosos que pudessem atentar contra a vida do ídolo maior da contemporaneidade, a porra toda do circo oficial do mundo do entretenimento musical para a massa.

“É ele! É ele!”. Poeta, conhecedor da alma humana, gênio, modelo estético da ousadia, pica doce! Tchuco, o vocalista carismático, quase messiânico, do maior fenômeno fonográfico dos últimos dez anos, a banda Sêmen THC.
“A minha música não é religião, porra! Parem de me seguir como idiotas!”, esperneava ele, enquanto chutava as fãs que se aproximavam, abrindo caminho.
“Me chuta, Tchuco! Me chuta!”, gritavam algumas.
“Pode bater! Pode bater!”.
“Me morde! Por favor, deixa a sua marca em mim!”.
“Você viu? Ele me empurrou! Ele me empurrou!”.
O carro conversível preto, 129 quilômetros por hora! Três anos representando o ilusório papel de entidade viva da cultura popular enferrujaram os mecanismos internos de vontade própria. Por essa razão, o machado.
“Não se preocupe, putão! O pessoal da gravadora tem tudo pronto. Não vamos ter que pensar em nada. Batalhamos pra caralho para chegar aqui. Agora, é a curtição!”, garantiu Horácio, o guitarrista bonitão, à época de empolgação, quando o sonho de tanto tempo enfim tomava alguma forma real.
“Vou comer todas as minha fãs”, delirava Canhoto, o complexado, repetição ambulante do clichê do baterista bobalhão, oculto dos holofotes pela sombra dos egos dos demais integrantes.
Sêmen THC! Tchuco, Horácio e Canhoto! Gozo tetrahidrocanabinol! Sêmen THC! Que fenômeno de público e de crítica! Que sonoridade! Que conexão com a platéia! Que estouro mercadológico supersônico! Mas Tchuco foi ainda mais longe! Ah, se foi! Puto, puto, puto! Tornou-se no imaginário social um deus da criatividade, do sentimento, da liberdade, uma espécie de Apolo eletrônico com voz encantadora. De tal modo era desejado e querido que passou a ter o direito de determinar normas de funcionamento e critérios de seleção da incrível e invejável série de orgias regadas a quitutes narcóticos, guloseimas psicodélicas e refrescos estimulantes que realizou com modelos, artistas e mulheres de todos os tipos. No entanto, o tempo não se deslumbrou com o mito da indústria e, quando o astro se acomodou no novo cotidiano libertino sem encontrar tanto quanto antes satisfação em sua megalomania, Cronos o levou ao labirinto onde se encontra agora.
O carro conversível preto, 137 quilômetros por hora! O sucesso é uma delícia, mas se torna vazio caso somente se reproduza em si mesmo, sem idéias e movimentos renovadores. “Maldita condição humana que me vicia com suas belezas, neuroses, dores e prazeres, prazeres, prazeres, o quê?, prazeres!”. Que prazer traz o machado.
Durante os shows, Tchuco passou a recorrer a um conhecido truque de vocalistas. “Canta por mim, platéia, que já não agüento mais gastar a minha vontade pela música nessa porcaria que antes me dizia tantas coisas mas que agora é apenas um bagaço de obra sonhada como algo grande”. Cansado da repetição de uma identidade de plástico, doidão, doido de pedra, roubado da própria consciência após receber o baque terrível e dilacerante, que não cicatriza mesmo, que se foda!, o buraco está lá e continua aberto, causado pela inesperada e violenta notícia da morte da mãe em um assalto, a quem propositalmente não via há dois anos, com quem rompera relações para se sentir um homem livre, pois a mulher que o carregou no útero por tanto tempo tentava controlá-lo, protegê-lo, mimá-lo a todo custo, enquanto ele queria ser uma espécie de porra-louca supra-humano sem necessidade de família, Tchuco se vitimizou no espetáculo da vontade própria. Pior para as mulheres que de modo repetitivo mergulhavam nas diferentes e renovadas camas onde o homem-mito se escondia.
“Fora daqui, suas vacas! A sua submissão interesseira me dá nojo! Deixem-me em paz!”.
As mulheres corriam nuas, abraçadas às roupas, e aterrorizadas para fora dos sucessivos quartos, perguntando-se como um compositor de letras românticas e poéticas e melodias tão marcantes poderia se assemelhar tanto a uma criatura monstruosa, egoísta, merecedora de pena, ódio ou indiferença. “A raiva é uma benção!”, em contrapartida, pensava Tchuco antes de se render a rapidíssimos momentos de culpa. Sempre e novamente e mais uma vez e “agora vai ser diferente”, prometia-se o astro, em muitas e muitas ocasiões.
“Fora daqui, suas vacas!”, repetia-se o quebra-quebra para desagrado daqueles que antes o amavam.
Medida de emergência, Tchuco foi orientado por seu suposto protetor, o empresário da banda, Vincent Casablancas, a se casar com a estrela em ascensão Ella Benarrivo. Durante a madrugada seguinte, o deus-músico conheceu a moça e apaixonou-se de modo categórico pela atriz cuja celebridade foi construída em novelas, filmes, comerciais de cartão de crédito, de banco, de perfume e de sabonete, ensaio sensual em revista de nudez de grande destaque e, sabe-se lá com qual lobby porque, oh, proteja-me, minha santa bocetinha amiga de todas as horas!, parecia piada quando se anunciou a vencedora, com a premiação de melhor atriz no festival cinematográfico mais conhecido do país. Má atriz? Não! De jeito nenhum! Ella Benarrivo precisa ainda evoluir bastante em sua carreira para ter o direito de ser considerada uma má atriz. Entretanto, aos amigos o astro do Rock se dizia entregue ao sentimento por Ella e rasgava-se em declarações de amor à beldade-mocinha de desejos ensimesmados embora ingênuos que ansiava pela chance de um dia interpretar nos palcos a Ofélia de Shakespeare e aquela do Molière, que como ela costuma afirmar “é um presente para uma atriz”, embora não se lembre do nome da personagem. Que casal! Ah, papparazo! Que casal!

Continua...