Parte 4 de 6 do conto (em repeteco a pedidos) Deus desnudo

De Rafa Lima


A linguagem se mostra feminina

Deus está mudado. Após o princípio moralista, enveredou por séculos pelo caminho libertino, Deus sob pele de cordeiro (de Deus), a paixão e o amor. Quando se viu destituído da função soberana do Universo, após a maracutaia humana, Deus se lançou às experiências sensoriais criadas por quem Ele criou, “a paixão se dá pela urgência do vômito, o amor pela paciência da digestão de uma suntuosa feijoada, vomitar proporciona tonteiras, enjôos e alívio no fim, digerir pode causar sonolência”. E tome pé-na-bunda divina desacostumada ao que é descartável. Mesmo assim, houve época em que ficou viciadão em sexo. Por ter sido aprisionado no planeta dos homens, Deus se viu diante do desafio de preencher as horas seculares de vazio em solidão divina. Enquanto buscava amores e fodas, amores tão intensos que a pornografia se envergonha, uma vez que já se cansara da grandeza espiritual e toda aquela pompa, desocupado mas com excesso de criatividade, tornou-se o inventor de expressões idiomáticas que todo mundo conhece mas ninguém sabe de onde, “chegou a hora de a onça beber água”, “aí a gente vai ver quem tem mais garrafas vazias para vender”, “malandro é o cavalo marinho que finge que é peixe para não puxar carroça”, “o amor é uma flor roxa que só nasce no coração dos trouxas”, nada disso, nada disso, “o amor é uma flor roxa que começa na boca e termina nas coxas”, oh, deus, as mais recentes em temporada no Rio de Janeiro, sínteses eloqüentes da objetividade petulante do carioca tomada pela realidade das favelas, “já é”, “perdeu, playboy”, “fala tu”, entre outras, de ditados populares, “quem não chora não mama”, “feliz foi Adão que não teve sogra”, “em rio que tem piranha jacaré usa camisinha”, “quem tem boca vai à Roma”, ah, se você soubesse o contexto dessa, de palíndromos, que na língua portuguesa, idioma novinho, com frescor, elaborado, cheio de variações, revelou-se uma brincadeira deliciosa descobrir palavras e frases que possam ser lidas da mesma maneira tanto da esquerda para a direita quanto da direita para a esquerda, “anotaram a data da maratona”, “ovo”, “ovo é ovo”, “Ana”, “Ana é Ana”, “a torre da derrota”, “anilina”, “somávamos” e o espetacular “socorram-me subi no ônibus em Marrocos”, de um lado para o outro do outro para o um, delícia!, e, nos últimos tempos, de marchinhas carnavalescas, quem mandou dizer que Deus é brasileiro?, Deus produz cultura supérflua para o imaginário das multidões enquanto espera pelo sexo que sempre aparece, “oh! Belezinha!”, Ele inventa porque “cabeça vazia é oficina do Diabo”.

Amigos, amigos, negócios falidos

Deus escuta a campainha do microscópico telepata celular que carrega no bolso. É só falar no Diabo. Deus se emputece, “o que será? Não sou mais onipotente, porra!”, atende ao aparelho.

“Qual é o problema, Lúcifer?”.

“Calma, marido traído, calma!”.

O Diabo quer discutir questões jurídicas, como sempre, “vai gostar de tribunal assim lá em Washington!”, algo sobre um conceito de divisão territorial no terceiro milênio da giga-era cristã chamado Deus e o Diabo na Era digital”. Deus se entedia.

“Já falei que assuntos dessa natureza são perda de tempo. Vivemos em uma época diferente, meu querido”.

O Diabo reclama, insiste, como sempre.

“Você devia arrumar uma namorada, demônio”.

“Eu tenho várias”.

“Uma de verdade, que vire você do avesso!”.

“Não perco tempo com balelas”.

“Você é quem sabe”.

“Não torra, manda-chuva do nada!”.

Desligam, “pobre Lúcifer, não aceita que ele e Eu fomos passados para trás pela humanidade”.

Continua na parte 5

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Parte 3 de 6 do conto (em repeteco a pedidos) Deus desnudo

De Rafa Lima

O vigia

Deus pensa no passado. Ele costumava agir de modo tão cruel quanto a idéia de viver nos tempos atuais em um mundo sem televisão. “Mitologia, seja grega, cristã, árabe, indígena, nipônica, zulu, esquimó, asteca, etc, tem pouco a ver com fé e muito com imaginação”, deus, desconstrutor, enquanto se recorda da noite em que viu um sem teto quase morrer de frio sob uma marquise assistindo a um jogo de beisebol em uma TV portátil. Mesmo a congelar, o pobre sujeito não largava o aparelho, “isso é fé?”, Deus também ignorância. O sem teto oscilava entre pedir a ajuda de Deus para o seu time, praguejar contra os lances do jogo e beber para esquentar. “Qual é a maior invenção de todos os tempos, a televisão ou o amor?”, Deus, confuso. Encontra o controle remoto, peladão, com a pica grossa à mostra, embora sem a menor disposição, coça-se e liga o aparelho. A televisão de Deus tem a pretensão de oferecer uma programação onisciente, sabe como é, para homenagear os velhos tempos de sabe-tudo. Não é o mesmo! Mesmo assim, Ele a tem evitado, estava se viciando em informação. Canal de esportes intelectuais, “porrada homossexual enrustida!”, o locutor da luta: “Hoje, pela Federação Internacional de Boxe Universal, Fibu, a Cultura de massa surrou e venceu as Belas-artes por nocaute técnico no nono assalto e já confirmou a realização do desafio contra a ex-campeã Filosofia”. Ele muda o canal, telejornal do Inferno, voz que transmite o ultraje da apresentadora: “Casal anglopalestino é impedido de retornar aos Estados Unidos”. Muda. “Compre agora as suas camisetas com os personagens de Pessoinhas e do Mendigo Pop”. Muda. Câmeras de segurança do Novo Iraque, nada acontece, só o silêncio da espera. Muda. “Por que será que as pessoas mais inteligentes, que levam uma existência mais divertida, votam sempre na esquerda e aqueles que ganham mais dinheiro e têm uma vida mais segura votam na direita?”, Deus se engasga com um quitute ao ouvir a pergunta, “que papo mais maniqueísta rola nesse mundo!”, gosta da fala coloquial, diverte-se com a gíria. Muda. Canal erótico, “hum, mais tarde”. Muda. Denúncia de venda ilegal de armas para a guerrilha na Colômbia “e em outros 74 países, não me sacaneia que ninguém sabia?”, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, “a hipocrisia vendida em frascos de perfume, a guerra como parque temático”, Deus bang-bang. “Na minha mão, seria mais barato matar uns aos outros. Terceiro milênio de cu é rola, continuam uns bárbaros!”. Muda. Muda. Muda. 747 canais de essência superficial. O galã em entrevista íntima: “Eu jamais viveria em um mundo sem as mulheres. Elas são o que há de melhor na vida”. Deus ri, pois sabe o que o célebre rapaz sente, “deixa de conversa mole, menino, conheço você, não faz tipo!, se as mulheres não tivessem bocetas você não dava nem ‘bom dia!’ para elas”, Deus, nada culpado por dizer a palavra boceta, ri da própria piada e por fim se sente sozinho. “No mundo dos homens, ser Deus é ser só”. Controle remoto, me muda. Muda. Muda. Muda a fala, em silêncio, mudada. Muda a mente, sem ação, temente. Muda, deus, mudo. Rápido interesse, “ah, não!”, fica puto, não interessa, “o objetivo supremo da sociedade de consumo se aproxima, em breve, somente os magros e raquíticos andarão nas ruas-passarelas. Oficialmente, não existirão mais gordos”. Muda de canal, mas nem vê, larga o controle, afasta-se da cama, deixa o aparelho em funcionamento sem público.

O menino cientista

Deus abandona a taxidermia de Si Mesmo e surge na varanda da casa de praia próxima a Fortaleza, Brasil. Prefere as madrugadas de calor, nas noites frias, a humanidade se protege mais, come mais chocolate, fica mais deprimida, as putas trabalham menos (porque também humanas). O interesse de Deus pelas mulheres é científico. Sim, sim, “até aonde vai a insatisfação com o papel exercido no mundo em contradição ao desejo do deslumbramento eufórico?”, Deus primitivo, quase machão, ainda não descobriu o prazer de desvendar as minúcias e os atalhos do complexo labirinto feminino. Atualmente, apaixonado pelo solo cearense, vai até as mulheres em andanças noturnas, quer crer que voltou a gostar de brincar de humano. Cansado da insipidez da morada celeste, a cada dia, cidade, lar e corpo novos! Nesses momentos, não sente falta da televisão. “No mundo de Deus, ser homem não é ser só”.

Continua na parte 4

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Parte 2 de 6 do conto (em repeteco a pedidos) Deus desnudo

De Rafa Lima


O truque humano

Deus, afastado da própria criação. “Fundei o Universo. Todas essas empresas, conceitos e idéias, como o Sol, as auroras boreais e a Audrey Hepburn, levam a minha marca”. Não houve jeito, é a lógica de mercado, para o bem das finanças da instituição o primeiro mentor da Companhia Existencial foi desligado do cargo, sendo substituído por um conselho de acionistas mitólogos, “que para comer alguém precisam de dinheiro ou de status, não conhecem outros métodos”, Deus, furioso, prepara o troco, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, o sarcasmo se tornou a ferramenta que o antigo soberano utiliza para se desvencilhar por instantes ligeiros da servidão a que o homem O submeteu, aposentadoria precoce que O acorrentou à doença de expansão humana. Se Deus, outrora amorfo e intangível, em estado bruto antes de assumir traços satisfatórios à humanidade, não se encontra alegre com o papel que desempenha nos dias de hoje, o Criador reage com as coincidências sarcásticas ou irônicas do destino. A ironia e o sarcasmo do cotidiano adquiriram para o antigo proprietário do planeta Terra o mesmo poder balsâmico que Ele Próprio costuma ter para a pessoa de fé. Após ser aproximado desproporcionalmente da criatura que O seqüestrou de Si Mesmo, Deus desenvolveu um tipo sacana de graça, divertida fragmentação da vida total, ácida elaboração dos movimentos do ser, de que adianta um homem ter um pau se não aprende a ser feliz pois está mais preocupado com a ameaça do outro?, “defesa!, defesa!, defesa!”, uma mulher ter tantos sonhos se não abre mão dos seus medos viciados que a levam pelo caminho dos modelos prontos de comportamento, fórmulas cristalizadas de sucesso?, “defesa!, defesa!, defesa!”, um escritor ter talento e visão-além-do-alcance da matéria existencial mesmo com toda aquela vaidade babaca, “que astro!”, se os leitores que o admirarão só nascerão muito tempo depois que o literato já estiver morto?, hipertédio, síndrome do pânico e diferentes tipos de câncer para os orgulhosos, fome, chicotadas na alma e outras experiências cancerígenas para os humildes, e, paraquemquiser!, doenças do sangue, do sexo ou da mente, “avante, supermacacos!”, Deus, colérico com o ser porque o homem não liberta Deus, como o filho não se atreve a lidar com a idéia da morte do pai (às vezes por desejá-la) e, portanto, encarar a própria morte. Deus quer liberdade, essa putinha inteligente! Enquanto se aproveitam Dele, Ele se vinga e manda os seus leais anjos, os poucos que não foram cooptados pela genial e mandona ambição de consumo compulsivo pré-suicida, “a idéia de futuro é um tremendo foda-se em termos globais, porque existem assuntos mais importantes que se referem aos egos e aos cus de cada um”, Deus, incrédulo, mas fale dos anjos, não perca o foco narrativo, esse puto!, não desvie a atenção de quem ama você através dos textos, enquanto se aproveitam Dele, Ele se vinga e manda os seus leis anjos sussurrar aos ouvidos de papais e mamães próximos a bebês e crianças, “quando crescer esse pequenino vai ser economista” ou “nasceu para ser advogada”, sim, sim, sim, sim!, “o mundo precisa de muitos e muitos e muitos economistas e advogados”, quase sempre funciona. Deitado no leito celestial, hotel seis estrelas, Deus peida, o Monte Vesúvio não dá sinais de reação como no passado.

Continua na parte 3

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Parte 1 de 6 do conto (em repeteco a pedidos) Deus desnudo

De Rafa Lima

Fantasias divinas

Deus sai do banho enrolado numa toalha com o desenho dos personagens clássicos da Liga Internacional dos Patetas, “que comédia de sucesso!”, o presidente, o aiatolá, a rainha, o ditador e a primeira-ministra, sentados no topo de uma pirâmide sustentada pelo herói atrapalhado mas de bom coração Zé Povinho. “Essa barba está enchendo o saco!”, Deus se olha no espelho, está realmente parecido com as características físicas do ser humano, egoísta, mesquinho, faminto, cheio de respostas prontas, metido a saber de tudo, “quem diria, hein?, que um dia eu fingiria identidades”. Lembra-se de tantos disfarces para se divertir sob a carne do supermacaco, o mendigo que testa a boa-ação dos outros, a vizinha gostosa que troca de roupa com a janela aberta, o policial que pede propina ao equivocado cidadão de rabo preso, assim como, o honesto oficial que não deixa o orgulho corporativo que sente ser contaminado pela prostituição da grana piranha, “bom tira, mau tira, divertidíssimos”, a jovem ambientalista cheia de ideais de preservação e evolução da espécie, “que saudades do Darwin! O menino Charles era show de bola!”, um assassino em série de indivíduos corruptos que se desdobrou e ganhou humor sob a faceta do estuprador de celebridades ocas, tantos outros, tantas outras, só assim mesmo para Deus suportar tal condição.

Continua na parte 2

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