A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 3

De Rafa Lima

O céu

Também chove no paraíso!, para refrescar de tanta perfeição, “livros são asas”, Vicky Pierrot se tornou parte do mito da máfia das letras, o grupo de pessoas que se fizeram invisíveis para intoxicar a cidade de cultura questionadora, imoral, poética mas também carnívora, nunca foram descobertos os métodos de atuação, somente se criaram hipóteses, conjecturas e lendas urbanas, “Rufus Lemon é um dos mentores?”, “não viaja, esse cara nunca existiu!”, não se sabe, mas fato é que os minilivros apareceram do nada em bairros diferentes para públicos diversificados em variadas ocasiões, resguardados pelo elemento-surpresa a que nenhuma investigação do poder público foi capaz de neutralizar, “de onde tiram o dinheiro que financia a brincadeira?”, “por que perder tempo com um esquema nada lucrativo?”, “qual é o real objetivo da ação?”, “será possível uma máfia que aposte no desenvolvimento intelectual do povo?”, muitas perguntas sem esclarecimento, por outro lado, quem disse que a população não se interessaria por literatura?, Deus está na comunicação, o Diabo na falta dela, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, de graça, bem escrita, acessível, fragmentada, adjetivada e futura, olhos com sede, água vale mais do que petróleo, leitura estimulante a quem não se habituou a ter os clássicos entre as mãos, como é bom produzir novos leitores, despertar-lhes o desejo, soprar-lhes no cangote imagens de mundos e de idéias que os libertem por alguns instantes de tudo aquilo que já está estabelecido ou quase morto-vivo, desejo, desejo, desejo, da menininha tímida ao herói que não vê mais graça em tanta luta até o velho desenganado, (os muito antigos diziam: “Vá se phoder!”, com ph, estranho!), como é possível que a reunião de palavras possa dar tanto tesão?, que a transcrição do inquieto vasculhar da alma humana produza tamanha simbiose com o que há de melhor por vir?, que um livro se torne de repente um cobertor contra tantos vazios?
“Vicky, vamos apavorar essa cidade com pensamentos fantásticos, você só precisa criá-los e amamentá-los, a gente cuida de todo o resto”, “a gente quem?”, “não interessa a você saber mais do que já sabe, é mais seguro, acredite”, “sei, aliás, não sei, nem o seu nome”, na verdade, reconheceu-o de outra época, mas ainda não quer revelar a descoberta, “está disposta a se entregar de verdade à nossa causa?, quer ser a maior escritora do nosso tempo?”, “é claro, lógico, óbvio!”.

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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 2

De Rafa Lima

Mais do inferno

Escrever é uma obsessão disfarçada de criação, “escrevo para o futuro”, Vicky Pierrot se resignou, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, sempre à espera de algo grandioso e edificante que compense tamanha entrega, fodidinha a menina que sonha através da arrogância do talento e afinal vê o mundo olhá-la de volta sem piedade, “a maioria dos escritores não compreende o público!, além dos conteúdos, quem lê busca um encontro invisível, uma ponte de integração às outras pessoas, não é por acaso que os mais vendidos vendam ainda mais quando são anunciados como tal e os autores clássicos sejam mais respeitados na maior parte dos casos pelo nome do que pelas obras, o livro é o mais espetacular portal entre solitudes que ultrapassa a barreira do tempo”, ela sempre se regozijava ao identificar as fórmulas de sucesso da indústria cultural, “conhecimento é solidão, sabedoria, conexão”, agora!, “me deixa em paz, me deixa em paz!”, primeiro pensa no ex-namorado, nem se dá conta, “fora de mim!”, consciência-armadilha, porque reveladora de amor-demônio que não a abandona, abre os olhos, “eu vou acabar com você, Vitória!, você não vale nada sem mim!”, está caída, o chão parece tão confortável, papai, “em casa”, ergue a cabeça, o invasor a observa, não se move, apenas observa, o terno preto, a gravata da mesma cor com brilho maior, o corte de cabelo moicano, os olhos fixos, expressão de estátua de bronze em que não se adicionou alma, “real ou imaginário?”, ela se levanta, “os dois”, reage, “o mesmo”, leoa, a raiva supre a necessidade do apetite mal tratado, enfim, a voz! “Quem é você, porra?”.

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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 1

De Rafa Lima

“Era um grito de dor e raiva que eu queria devolver ao mundo, mas reprimi, condensei em minhas entranhas, cozinhei em fogo baixo e, antes que virasse doença, transformei em arte minha, de volta ao mundo como inspiração de vida o lamento de morte, porque enquanto eu puder criar, não existe moléstia, enquanto eu quiser ir além, a perda me afeta, me abate, sem me impedir de ir bem adiante! O vazio me locomotiva”.
Rufus Lemon
O inferno
A chave gira apenas uma vez na fechadura da porta do apartamento, aberta, alerta, Vicky Pierrot, habituada a dar sempre duas voltas, “só para garantir”, estranha, desconfia, move-se com lentidão quando a escuridão no interior do imóvel lhe toma a visão, entra, ouve o som da chuva que do outro lado da vidraça da janela renova o espírito de obviedade do cotidiano, a cidade em crise de repetição, a jovem escritora pressente algo incomum, um arrepio lhe atravessa as costas, “o que está acontecendo aqui?”, pressiona o interruptor, a luz da sala não se acende, “droga!”, caminha até a cozinha, nada feito, “sem luz, só me faltava essa”, pensa no ex-namorado, “cadê a mulher independente?, agora quer a minha ajuda?, como é prático para as mulheres ser machistas quando convém”, ela concorda, auto-ironiza-se, até que se deixa tocar pelo ressentimento, “ainda bem que você não está aqui, seu sabetudo, metidão, tenho nojo de você”, treme, jamais desejaria sentir tamanha imundície sobre uma história de plenitude a dois, “que se dane!”, ascensão e queda, vai até o primeiro quarto, negativo, no segundo o mesmo quadro de ausência de luz, abre uma gaveta, pega a lanterna, “meu anjo da guarda tecnológico”, e espia pela janela agora mal refletida em cuja vidraça se cria uma imagem loira borrada entre as pequeninas linhas líquidas que escorrem, apostam corrida entre elas para atingir o fim, parecem jorrar de Vicky Pierrot, “que bonita fico quando me faço chuva”, os prédios em frente se encontram apagados, a altitude não ameaça hoje, de repente, a quilômetros, a explosão no topo de um edifício babélico micro-ilumina o blecaute do mundo, amarelo, fogo, fúria, trevas da clareza, aos olhos de Vicky Pierrot parece uma cena de guerra, “minha nossa!, de onde tirei isso?”, desperta, o prédio está intacto, maldita imaginação, ilusionista dos sentidos, prestidigitadora da vontade, tão lunática quanto é neurótica a impressão de realidade, sente o coração se acelerar, senta-se em meio à escuridão à beira da cama, quase cai, mas já conhece a lógica do declínio, sustenta-se mais uma vez, perdida, perdida, perdida, o caminho inicial de todo escritor é a perdição, o escritor é esquecido antes de ser conhecido, como uma vida de trás para a frente cuja morte significa eternidade, o acordo se faz com o tempo (você quer ou não?), então, luz!, “aêêêêê!”, Vicky Pierrot se anima, num instante, acendem-se as lâmpadas dos quartos, da cozinha e da sala, desliga a lanterna e sente saudade dela, de ser a condutora da iluminação, “hum, que fome!, estou há muito tempo sem comer, preciso parar de agir assim”, ela se levanta, anda, “que boba!, fiquei alegre do nada”, retorna ao cômodo central do apartamento, de repente, não-ar!, a visão, sensação de tonteira, pernas bambas, o grito fica entalado, “quem?”, medo, queda da pressão arterial, luta, vai desmaiar, um homem, um invasor, “mas como?”, um homem todo de preto com corte de cabelo moicano sentado imóvel na poltrona, vai desmaiar, vai desmaiar, o chão a abraça com a rigidez do carinho paterno, a dor nunca foi um privilégio, não haveria de ser agora, o ângulo do olhar se inclina, a escuridão de novo, agora vinda de dentro.

Continua...


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