Parte 2 do conto: Radiohead na Portela ( Psicotrópicos nos trópicos )

De Rafa Lima

Continuando...

“Stanley!”, de repente, ouve uma voz feminina chamá-lo. “Você se perdeu?”.
Ele concorda com um gesto de cabeça e se abaixa para beijar rapidamente nos lábios Tati (hipertexto, o rebolado da verdadeira garota nacional, ela não come fast-food, não vê filmes de Hollywood, não usa calça jeans, só bebe guaraná, adora palavras nativas como açaí, cupuaçu, acarajé e champanhe, não conhece o conceito de antropofagia cultural proposto por Oswald de Andrade na semana modernista de 1922, mas adora cair de boca sobre os gringos, nem percebe a contradição, “ih, puxa vida”, esqueceu de tomar a pílula hoje, é tão cheia de modelos de comportamento que não suporta as modelos de passarelas, assiste aos jogos da seleção brasileira de futebol emitindo gritinhos agudos toda vez que a bola se aproxima de uma área ou de outra, embora considere futebol muito chato, “para que noventas minutos de jogo?”, só fala mal de amiga quando não tem jeito mesmo, sente pena do povo sofrido, “de verdade, acredite, é verdade”, mas atravessa a rua quando vê um mendigo, não entende, mas adora os antiqüíssimos filmes de Godard, mais para contar para os outros que assiste coisas desse gênero e assim se sentir valorizada, quando ela mesma às vezes não sabe se dar valor, porque adora escolher homens canalhas, insensíveis, cachorrões mesmo, garantia contínua de sofrimentos e desvalorizações, faz da sua vida um RPG de novela, não transa sem camisinha com desconhecido, faz novos amigos diariamente, não trepa com ex-namorado de amiga, afinal, há uma ética, no máximo, no máximo, topa um boquetinho, não veio à praia anteontem mesmo com todo aquele sol que fez porque enfrentou uma fila danada para renovar o passaporte, acha o Brasil o melhor lugar do mundo, sem dúvida, “não há nada igual ao Rio de Janeiro”, mas adoraria morar em outro lugar, é categoricamente contra o turismo sexual, só rebola quando quer chamar a atenção) que está sentada sobre uma canga de cores psicodélicas, molhando a moça com algumas gotas salgadas.
“Ai, que água gelada!”, prossegue Tati em inglês. “O seu telefone tocou, enquanto você estava no mar”.
“Olha, o mate! Olha o galão! Olha o mateeee!”.
“Era o John. Deve estar na areia me procurando. Ele não tem o hábito de vir à praia, mesmo morando tão perto. Ele é mais inglês do que carioca”.
“Água, água, água! Coca-cola! Guaraná!”.
“Por que o seu amigo é tão mal humorado?”.
“Não fale assim dele, doçura. O John só precisa se soltar mais. Com licença. Oi, John, sou eu... está me ouvindo?... sim, estou, no mesmo lugar... sim, em frente à mesma barraca, só que mais perto do mar. Ah, vi você! Olha para a sua esquerda!”.
“Adoro o seu sotaque, sabia? Aliás, gosto de você todo!”.
“Olha a esfiha árabe. Delícia! Delícia! Esfiha, kibe!”.
O inglês sorri para esconder uma pitada de constrangimento. Nem de longe sente o mesmo pela moça. Tati é a terceira garota que conquista em uma semana, “não imaginei que as mulheres da elite carioca gostassem tanto dos estrangeiros”. Não demora, João e Flavinha (hipertexto, mulher inclassificável) se aproximam de Stanley e Tati, seguidos por Tonho (hipertexto, 44 anos, sete trabalhando na praia, diabético, sujeito batalhador de coração dividido entre dois amores, a filhinha de quatro anos chamada Laís que vive com a ex-esposa e, cante com ele como se estivesse no Maracanã, palmas lá no alto: “E ninguém cala esse nosso amor/E é por isso que eu canto assim/É por ti Fogo!”. Lindo! Emocionante! Mas como sofre o pobre diabo! Tem coisas que só acontecem ao Botafogo!) que carrega duas cadeiras de praia e uma barraca.
“Aqui está bom, patrão?”.
“Bota um pouco mais para cá! Não! Não! Mais para cá!”.
“Aqui?”.
“Não, não, aqui!”.
O homem obedece. Pronto. Finalmente, estão o mais próximo possível do que se pode considerar confortável no formigueiro de sensualidade em um dia de verão que é o ponto em frente à rua Joana Angélica na praia de Ipanema (hipertexto, a explosão demográfica transformou a garota de Ipanema do terceiro milênio em uma matrona magérrima e conservadora, cheia de filhos, netos, bisnetos e sobrinhos miseráveis que pedem esmola à tia célebre, parentes cujos nomes a musa popular sequer desconfia, porque são poucos os sortudos a quem ela permite a benesse de mamar em uma de suas oito tetas mutantes sustentadas pelo silicone).
“Que semaninha agitada, hein, Stanley?”, provoca João.
“Mas está se divertindo, não está, meu amigo? Já até pegou um bronzeado!”.
“Olha, o mate! Olha o galão! Olha o mateeee!”.
“Até fez sexo, não é, Jo-on?”.
As meninas explodem em risadas.
“Com quem?”, interessa-se Flavinha, nada deslumbrada por fazer parte de um diálogo em inglês. “Quer dizer que está me traindo?”.
“Nunca tive nada com você, sua doidinha. Vamos mudar de assunto, certo? Não quero falar sobre as minhas intimidades”.
De repente, Flavinha percebe a presença de um playboy wannabe pimp, com quem foi para a cama no mês passado, em uma noite de delírio, para rapidamente fingir ignorá-lo.
“Você não vai acreditar, Flavinha”.
“O que houve, Stanley?”.
“Ontem, nós três fomos à feijoada da Portela e em determinado momento o Jo-on começou a cantar Radiohead. Inacreditável!”.
“Está brincando? João, por que você não aceita o país em que vive?”.
“Porque não suporto essa ditadura do bem-estar, eu detesto o sol e a alegria obrigatória, foda-se, não me interesso pelo pôr-do-sol, nem pela luta popular por espaço, o Carnaval não passa de um circo megalomaníaco realizado para inglês ver”.
“Como pode?”, ofende-se Tati. “Que mente imperialista de merda a sua!”.
“Não me enche, tchutchuca!”.
“Quer jogar frescobol, Flávia? O pensamento unilateral nunca permite um bom debate de idéias”.
John, não mais João!, não mais João!, lança um olhar de desprezo à garota nacional, “ufa! Ufanismo!”, por instantes, ele delira, insolação na alma, deseja um eclipse solar que torne escuro o dia, quem sabe?, uma tempestade polar, o Rio de Janeiro abaixo de zero graus Celsius, “falar em limpeza étnica é considerado fascismo, mas que tal um pouco de educação para esse povo ignorante e orgulhoso dessa ignorância?, por exemplo, esse objeto se chama livro, mas não!, vivemos sob a égide da Santíssima Trindade, futebol, mulher e cerveja, não precisamos de mais nada, certo?”, enquanto isso, à beira-mar, “não é possível que não exista um intelectual sem atitude pernóstica”, pensa Flavinha, enquanto rebate à bolinha com a raquete “por favor, intelectual gente-boa carioca, venha para a luz! Vamos diminuir a distância entre espaços que não se separam mesmo com túneis como o Rebouças, nem com a divisão simplista entre morro e favela”, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, Cristo Redentor só tem duas mãos que juntas formam o maniqueísmo. Além? Ouvi dizer, vamos além algum dia? O Deus dessa cidade deveria ser um polvo, sim, sim, diversas vias, múltiplas idéias.
“Por favor, diga algo em português para eu praticar”, anima-se o jovem inglês, retirando o amigo do culto fascista.
“Eu seria capaz de cometer parricídio para trocar de lugar com você na sociedade inglesa, amigo”, John diz de modo acelerado.
“O quê? Repete mais devagar”.
“Eu seria capaz de cometer parricídio para trocar de lugar com você na sociedade inglesa”.
“Não entendi direito. Traduz, amigo”.
“Eu disse que estou planejando me mudar para a Inglaterra”.
“Está mesmo?”.
“De fato”.
“Está querendo bancar o dominador?”.
“Cale a boca, Stanley!”.
“Você deveria valorizar mais as maravilhas da sua cidade”.
Três segundos de escárnio silencioso.
“Você precisa aprimorar os seus gostos”.
“O Rio de Janeiro é maravilhoso!”.
“O Rio de Janeiro é caótico!”.
“Paraíso!”.
“Prisão!”.
“Novo mundo libertador!”.
“Retrocesso histórico!”.
Num instante, são distraídos pelo grito de mais um vendedor de mate que passa carregando galões cheios da bebida e de gelo chacoalhante sobre os ombros, chonque, chonque, chonque. “De que servem o sol, a areia, o mar, os corpos, os olhares, o movimento se não se transformarem em liberdade?”. Liberdade, essa putinha com marquinha de biquini pela qual tantos povos se acostumaram a matar e morrer! “So exciting, so exciting!”.
“Caralhow!”, comemora o estrangeiro marijuanado em transbordamento, arranhando um palavrão em português. “Que lugar! Essa praia, essa gente, essa efervescência, tanta vida, tanta vida, oh, meu deus, John, veja aquela bunda! E aquela! E aquela!”.
“Veio fazer turismo sexual, meu amigo?”.
Stanley ri com ironia.
“O que é isso, amigo? Não é possível que logo você não entenda o que sinto! Tanta vida, tanto movimento, tanta alegria ao nosso redor, e você, Jo-on, fica com cara de guarda noturno!”.
“Vá se foder, Stanley! Em primeiro lugar, o meu nome não é Jo-on, é João! Fale direito se quiser ser respeitado pelos nativos. Ão e não on! Continue a me chamar de John que fica mais fácil para você. Em segundo, parece que pegou sol demais de novo. Quero ver se sentir tão bem amanhã, quando estiver parecendo um camarão como aconteceu nos primeiros dias!”.
“Nada disso. A sua amiga Tati passou protetor solar em mim”.
Hesitação.
“Verdade?”.
“Quem sabe?”.
O silêncio gostaria de beber um mate.
“Amanhã, eu não venho à praia”, sentencia John.
“Eu venho”, declara Stanley.
O londrino quer sentir como o carioca; o carioca quer ter os privilégios do londrino. O que vale mais? Trezentos ingleses assaltados, coagidos e humilhados no Rio de Janeiro ou um estudante brasileiro morto no metrô de Londres pela polícia inglesa cujo crime tentou encobrir?
We don’t forget!
O brasileiro não tem memória?

2 comentários:

Anônimo disse...

às vezes, não tem memória, mas agora está começando a lembrar mais das coisas, ter mais consciência política, ou não? Muito engraçado o tewxto.

Anônimo disse...

Como eu gosto desse conto!
Talvez por ser o primeiro "by Rafa Lima" a que tive acesso (e isso teve um sabor de SURPRESA delicioso), talvez pelo título "queromuitolerlogo", talvez pelos hipertextos geniais (e sarcásticos suficientes para causarem sorrisos maliciosos em quem lê) que descrevem tão bem os estereótipos clássicos da nossa cidade maravilhosa!
Sem falar no Jo-on (adoro, cara cricri!).

Beijoo!