Roteiro de curtametragem O Reflexo de Alice

De Rafa Lima e Marcio Fonseca

Citação:
"Os homens deviam ser aquilo que parecem...
ou, pelo menos...
não deveriam parecer o que não são".

William Shakespeare

(Créditos iniciais).

1. Interna. Teatro. Noite.
(Fim de ensaio. Natanael, o diretor, fala com o elenco que não aparece no quadro).
NATANAEL
_ Falta uma semana para a estréia. Gente, lembrem-se que antes do útero o ser humano conheceu o ego.
(A câmera prossegue em movimento e encontra Arthur e Gilberto cochichando em um canto).
GILBERTO
_ Fala, Arthur... Diz de uma vez. Pode dizer, cara.
ARTHUR (receoso)
_ Alice.
GILBERTO
_ O quê? A Alice?
ARTHUR
_ Agora confessa. Você já sabia!
GILBERTO
_ Juro que não. Vocês sempre foram amigos, mas nunca poderia imaginar que estivesse gostando dela.
ARTHUR (recriminando)
_ Fala baixo, Gilberto. Esta história não pode vazar, certo?
GILBERTO
_ Pode confiar em mim.
ARTHUR
_ Eu a conheço há tanto tempo e sei tão pouco sobre ela.
GILBERTO
_ Vocês estão aqui desde a criação da companhia, não é?
ARTHUR
_ Mas eu nunca me interessei por ela. Era apenas uma boa atriz. Você sabe, sempre fui muito fechado para as pessoas. Só me interessava o lado profissional. (Gilberto ri). Gilberto, você, que está na companhia há menos tempo, conhece melhor do que eu as pessoas aqui dentro. Mas não teve saída, só consigo pensar nela.
(Breve imagem de Alice com seu charme particular).
ARTHUR (enfeitiçado)
_ A Alice é maravilhosa.
(Surge Natanael).
NATANAEL
_ Quem é maravilhosa?
ARTHUR
_ A peça.
NATANAEL
_ Certo.
(O diretor se afasta).
GILBERTO
_ Por que você mentiu? O Natanael é teu amigo, além de teu diretor, ele é teu amigo. Não precisava ter mentido para ele. Aposto que ele ia te apoiar.
ARTHUR (sombrio)
_ Já fiz, não tem remédio.

2. Interna. Camarim. Noite.
(Movimento de câmera pegando o corpo de Alice de baixo para cima. Pés. Pernas, vestindo calça jeans. Fechando o
botão da calça. Umbigo. Abotoando o sutiã. Rosto de Alice. Reflexo dela no espelho. A imagem de Arthur surge no
espelho. Virada de câmera. Arthur, parado na porta do camarim, perplexo).
ALICE (neutra)
_ Arthur, será que você poderia chegar amanhã mais cedo? Eu gostaria de passar as nossas cenas.
(Arthur entra no camarim. Pára entre Alice e o reflexo dela no espelho).
ARTHUR
(em off): "Você é linda, por Deus, você é muito linda".
_ Amanhã?
ALICE
_ Você pode?
ARTHUR
(em off): "Eu te amo, eu te amo, eu te amo".
_ Claro.
(Ele pega uma bolsa e um livro sobre a bancada do camarim).
ALICE (vestindo uma blusa)
_ Que livro é este?
ARTHUR
_ Alice no país das maravilhas.
ALICE (sorrindo)
_ Que bonitinho. Conheço este livro de trás para a frente. (Pega a bolsa dela e beija o rosto de Arthur). Até amanhã. (Sai).
(Arthur fica olhando para o espelho vazio).

3. Interna e externa. Carro de Arthur. Noite.
(Joga a bolsa e o livro no banco do carona. Breve imagem de Alice repetida da cena 1. Chave na ignição. Arthur mordendo o seu lábio inferior. Troca de marcha. Sinal de trânsito com a luz amarela acesa. Pés cruzando a faixa de pedestre. Pé no acelerador. Alice, no meio da rua, virando-se surpresa na direção do carro. Fade out).

4. Externa. Rua. Noite.
(Arthur saindo do carro. Alice está estirada no chão, morta).
ARTHUR
_ Meu Deus!
(Corre em direção a ela).
ARTHUR
_ Morta. Alice, morta.
(Agacha-se diante dela. A expressão de seu rosto se transforma aos poucos, de um olhar fixo e assustado adquire um aspecto macabro).
ARTHUR (perturbado, porém estático)
_ Morta. Alice, morta.

5. Interna. Apartamento de Arthur. Manhã.
(Porta do apartamento sendo aberta. Entra Arthur, sujo de terra. Flash de Arthur, na noite passada, carregando o corpo de Alice nos braços em um terreno baldio. Arthur no banheiro se despindo. Flash de Arthur cavando uma cova. Arthur, no banho, ensaboando-se insistentemente. Flash de Natanael dizendo: "Antes do útero o ser humano conheceu o ego". Arthur diante do espelho).
ARTHUR
_ Eu não tive culpa.

6. Interna. Teatro. Noite.
(Natanael no centro do palco fala com o elenco que não aparece no quadro).
NATANAEL (enfurecido)
_ Não sou babá dos atores. Se a Alice não aparecer até o fim do ensaio, ela está fora da peça! Já estou pensando em remanejar os personagens femininos.

7. Interna. Camarim. Noite.
(Movimento de câmera pegando o corpo de Arthur de baixo para cima. Pés. Pernas, vestindo calça jeans. Fechando o botão da calça. Vestindo uma camiseta, ao fundo, o espelho está coberto com um pano preto. Rosto de Arthur. Virada de câmera. Clara, parada na porta).
CLARA
_ O que você vai fazer agora?
ARTHUR
_ Nada. Vou para casa... você sabe o que aconteceu com o espelho?
CLARA
_ Alguém quebrou... Quer ir dançar comigo?
ARTHUR (seco)
_ Não.
CLARA
_ Não?
ARTHUR
_ Não quero dançar. Estou cansado.
CLARA
_ Arthur, vamos aproveitar que o Natanael terminou o ensaio mais cedo.
ARTHUR
_ Não quero.
CLARA
_ Tem comida na sua casa?
ARTHUR
_ Não.
CLARA
_ Então, você vai jantar lá em casa.
ARTHUR
_ Não precisa se incomodar comigo.
CLARA
_ Não vai ser incômodo algum.
(Clara sorri de maneira insinuante).

8. Interna. Apartamento de Clara. Noite.
(Som da campainha da porta).
CLARA
_ O rapaz da pizza chegou. Você tem dinheiro?
ARTHUR
_ Tenho.
CLARA
_ Ainda bem. Acho que esqueci a minha carteira no teatro, você acredita?
ARTHUR
_ Não.
CLARA
_ É verdade. Eu ando bem esquecida ultimamente.
ARTHUR
_ Sinal de que você precisa parar de fumar maconha.
CLARA
_ Engraçadinho.
(Clara abre a porta. Aparece o entregador de pizza).
ENTREGADOR DE PIZZA
_ Pizza literária. Satisfação para a sua barriga e alimento para a sua mente.
(Entrega a embalagem de pizza para Clara).
CLARA (Para Arthur)
_ Adoro a idéia desta pizzaria. Parece um biscoitinho chinês. Vem sempre com uma mensagem dentro.
ENTREGADOR DE PIZZA
_ São catorze contos, senhora.
CLARA (Para o entregador)
_ Você continua escrevendo os seus poemas?
ENTREGADOR DE PIZZA
_ Sempre que posso, senhora. Obrigado e bom apetite.

9. Interna. Apartamento de Clara. Noite.
(Clara e Arthur acabaram de comer a pizza. Ela está lendo a mensagem literária da pizzaria em um pedaço de papel).
CLARA
_ Esta mensagem nunca foi tão perfeita. Você leu?
ARTHUR
_ Não.
(Clara entrega o papel a Arthur).
ARTHUR (lendo)
_ Os homens deviam ser aquilo que parecem ou, pelo menos, não deveriam parecer o que não são. William Shakespeare.
CLARA
_ Bem apropriada. Você não acha?
ARTHUR
_ Aonde você pretende chegar?
CLARA
_ Você parece um, mas na verdade é outro.
ARTHUR
_ Como assim?
CLARA
_ O que você fez com o corpo dela?
ARTHUR (pasmo)
_ O quê?
CLARA
_ Não se assuste. Eu sei o que aconteceu. Eu estava saindo do teatro, quando você a atropelou.
ARTHUR (perplexo)
_ Por que você não me ajudou?
CLARA
_ Porque você estava se saindo muito bem. Foi de propósito?
ARTHUR (ultrajado)
_ O quê?
CLARA
_ Foi intencional?
ARTHUR
_ Você é doente!
CLARA
_ No entanto, foi você quem a matou.
ARTHUR (em desespero)
_ Foi sem querer. Eu não a vi.
CLARA
_ O que você fez com o corpo dela?
ARTHUR
_ Não vou dizer.
CLARA
_ Tudo bem. O personagem já é meu mesmo. Não tenho com o que me preocupar.
ARTHUR
_ Você acha que o Natanael vai mesmo estrear sem a Alice?
CLARA
_ Claro, ele já remanejou o elenco. Além disso, ele nem desconfia de que a Alice está morta. (Irônica). Você vai contar para ele?
ARTHUR
_ Óbvio que não.
CLARA
_ Eu também não vou. Pode acreditar.
(Clara senta no colo de Arthur).
CLARA
_ Você deve estar me achando uma escrota. Eu não sou nada disso. Apenas não gostava dela e não sou hipócrita de
fingir o contrário.
(Clara beija Arthur).
CLARA
_ Eu te amo, Arthur.

10. Interna. Quarto de Clara. Noite.
(Clara e Arthur, nus, na cama da moça. Ela está sobre ele. Ele a abraça).
CLARA (sussurrando)
_ Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!

11. Interna. Quarto de Clara. Manhã.
(Clara acorda e percebe que está sozinha na cama. Levanta-se e devagar procura Arthur pela casa. A câmera percorre com Clara os cômodos da casa, quarto, banheiro, cozinha. Por um momento, Clara pára na sala. Vira-se de costas para retornar ao quarto, mas a porta do apartamento se abre. Entra Arthur com um jornal e um saco de pão. Ela caminha até ele, sorrindo).
CLARA
_ Bom dia.

12. Interna. Teatro. Noite.
(Close up na atriz)
ATRIZ (gritando)
_ Elenco, no palco!
(Abre câmera. Arthur, Clara e Gilberto entram esbaforidos. Natanael aparece sentado na primeira fileira do teatro).
NATANAEL (desorientado e sério)
_ Gente, eu tenho uma notícia ruim e outra pior para dizer. Qual vocês querem primeiro?
GILBERTO (riso nervoso)
_ A ruim.
NATANAEL
_ A peça está cancelada.
(Os atores esboçam reações sem muita firmeza).
NATANAEL
_ A pior é que encontraram a Alice. Ela está morta. Encontraram o corpo dela enterrado em um terreno baldio.
(Clara e Arthur trocam olhares sutis).
GILBERTO
_ Como ela morreu?
NATANAEL
_ A polícia ainda não sabe. Levaram o corpo para a autópsia. Aliás, tem gente aqui querendo falar com um de vocês.
(Dois policiais aparecem na beira do palco).
PRIMEIRO POLICIAL (apontando para o palco sem que se veja os atores).
_ Você, tenha a gentileza de nos acompanhar até a delegacia.
CLARA
_ Eu?
SEGUNDO POLICIAL
_ Você é Clara Kiryakov?
CLARA
_ Sou.
PRIMEIRO POLICIAL
_ Você está presa pelo assassinato de Alice Fonseca Lima.
(O segundo policial algema Clara).
CLARA (abismada)
_ O que é isso? Vocês não podem... me larga, não têm o direito.
GILBERTO
_ Vocês têm provas?
SEGUNDO POLICIAL
_ Sim, filho, temos provas.
CLARA (desconfiada)
_ Quais provas?
SEGUNDO POLICIAL
_ Você cometeu um erro. Deixou a sua carteira com seus documentos cair no chão, próximo ao local onde enterrou o corpo.
CLARA (percebendo a armadilha)
_ O quê? (apontando com o queixo para Arthur) Foi ele!!!! Foi ele quem a matou e quem pôs os meus documentos lá para me incriminar.
ARTHUR (dissimulado)
_ O que é isso, Clara?
CLARA
_ Foi ele!!! Foi ele!!!
PRIMEIRO POLICIAL
_ É bom você se explicar, rapaz.
ARTHUR
_ Eu? Esta mulher é louca. Está querendo colocar a culpa em outro para se safar.
PRIMEIRO POLICIAL
_ Você tem alguma ligação com a história?
ARTHUR
_ Nenhuma.
PRIMEIRO POLICIAL
_ O que você fez esta semana?
NATANAEL (interrompendo)
_ Senhores, este interrogatório não é necessário. Durante toda a semana, este jovem passou as noites comigo.
(Perplexidade geral. Rostos constrangidos).
PRIMEIRO POLICIAL
_ Certo.
(Os dois policiais levam Clara para fora do teatro que grita incessantemente: "É mentira, foi ele!!!". Natanael se apressa em abandonar o palco em direção ao camarim. Arthur o segue).

13. Interna. Camarim. Noite.
(Natanael está sentado em frente ao espelho coberto pelo pano preto. Entra Arthur).
ARTHUR (comedido)
_ Por que você mentiu?
NATANAEL
_ Porque era o mais certo.
ARTHUR
_ O mais certo?
NATANAEL
_ Você já tem bastante sofrimento dentro de você.
ARTHUR
_ Como assim?
NATANAEL
_ Eu sei que você amava a Alice. Ouvi você conversando com o Gilberto. Tenho um bom olho. Eu menti, porque a justiça é muito confusa. Você não podia ser punido por amar a Alice.
ARTHUR
_ O que vai acontecer a Clara?
NATANAEL
_ Provavelmente, na delegacia vão arrancar a confissão dela, de um jeito ou de outro. Talvez algum advogado a convença a contar a verdade para reduzir a pena.
ARTHUR
_ Ou, então, a verdade vai aparecer sozinha.
NATANAEL
_ O que você quer dizer?
ARTHUR
_ Que ninguém sabe o que de fato aconteceu.
(Aproxima-se do diretor e aperta a sua mão).
ARTHUR (sincero)
_ Obrigado.

14. Externa. Rua. Noite.
(Arthur caminha pela rua sem compromisso. A lua crescente aparece no quadro).
_ Parece o sorriso do gato de Alice.
(Arthur sorri).
(Créditos finais).

3 comentários:

Anônimo disse...

Esse roteiro é bárbaro. Por que você não o inscreve num concurso de curtas?

Anônimo disse...

Cadê o parceiro do roteiro que não dá uma força para isso ir para a frente?

Anônimo disse...

CARACOLES!!!! Que roteiro escorpiano é esse????
Adoro histórias pantanosas e de mentes lodosas( palavra retirada do radical LODO, se é que existe essa palavra, mas se não existir, criei agora). Quando eu crescer, quero escrever roteiro igual a você! beijokinhas.