Cena da peça Os despertAmores

De Rafa Lima

CENA 5

(Cabana dos despertAmores. Os três casais aguardam a chegada dos guias espirituais).
ARNALDO – Quanto tempo mais esses mercenários nos farão esperar?
SOCORRO – Mais respeito, Arnaldo! Eles só querem nos ajudar.
MANUELA – Só se for para enriquecê-los!
CATARINA – Vocês são mesmo muito cínicos! Por que não vão embora de uma vez se estão descontentes?
LELO – Isso mesmo! Ninguém está obrigando ninguém a permanecer na cabana!
GISELLINE – Por que você está dando apoio a esta sirigaita, Lelo?
CATARINA – Quem é sirigaita?
GISELLINE – Você é sirigaita!
CATARINA – Lelo, controla essa sua mulher, senão eu vou descer a mão nessa grã-fina barraqueira!
GISELLINE – Quem te deu esta intimidade para falar assim com o meu marido, sua franguinha? Lelo, faça alguma coisa!
LELO – (Risonho) Elas me adoram! Desculpe, meninas, eu tento não ser tão atraente, mas é muito difícil para mim.
MANUELA – Esse é mais burro do que uma porta!
ARNALDO – Vai depender do tipo de porta que você está falando.
(Manuela e Arnaldo caem na gargalhada).
SOCORRO – Quer parar de se exibir, Arnaldo? (Aliviada). Até que enfim, lá vêm eles!
(Entram CÍCERO DOMINICAL e MENEGAL).
CÍCERO – Acalmem-se, meus passarinhos, acalmem-se! Como posso ver a nossa terapia em grupo já teve início de uma forma bastante promissora. As cápsulas da verdade já estão fazendo efeito. Por favor, não me olhem com essas
expressões tão desconcertadas. Ajude-os a entender, Menegal!
MENEGAL – Aquele remédio “homeopático” que pedi que tomassem depois do café da manhã era uma cápsula da verdade. Este produto patenteado do Laboratório Farmacêutico Cícero Dominical inibe a parte do cérebro humano que
produz as mentiras. Deste modo, tudo o que vocês disserem nos próximos minutos será aquilo que realmente pensam.
CÍCERO – O nosso objetivo com a utilização das cápsulas da verdade é acabar com a hipocrisia que oculta os desejos mais íntimos da alma humana. Embora possa ser cruel, a verdade é irmã gêmea do amor. Se quisermos despertá-lo novamente, teremos que enfrentá-la! Querem um exemplo? Minha cara Giselline, quem aqui nesta cabana é a pessoa que provoca em você o maior desejo?
GISELLINE – Leluela! (Gagueja). Leluela! (Desespera-se). Leluela!
CÍCERO – Mas, Giselline, nenhum de nós se chama Leluela. Vou tentar de novo. Quem é a pessoa nesta cabana que mais te excita?
GISELLINE – Manuela!
CATARINA – (Surpresa) Rameira! Essa galinha ainda tem coragem de falar de mim!
CÍCERO – E você, minha doce Catarina, quem dentre nós desperta a selvageria erótica que há em você?
CATARINA – O Lelo, puxa vida. Desculpe, Manu, mas ele é muito gostoso!
LELO – Sou mesmo!
CÍCERO – E quanto a você, Lelo? A quem você mais deseja aqui nesta cabana?
LELO – A mim mesmo!
CÍCERO – Excetuando você, meu passarinho vaidoso, quem é a pessoa que você mais quer beijar?
LELO – Ninguém beija melhor do que a Catarina! Isso é fato!
GISELLINE – Desgraçado! O meu mundo caiu! Sorte minha, Lelo, você ser infeliz por ter um pau tão pequeno!
LELO – (Em tom agudo) Giselline!!! Ficou maluca?
CATARINA – Que barraqueira é essa madame!
MANUELA – Pare de atacá-la, Catarina! Você não tem nada a ver com essa história.
CÍCERO – E você, minha mais nobre inimiga, quem é a pessoa que mais te atrai neste momento?
MANUELA – Estou completamente confusa, Cícero, mas não pense que pode me manipular.
MENEGAL – Por falar em manipular, Manuela, por que você não acaricia novamente as mãos de Giselline?
LELO – Giselline, o que está acontecendo? Como eles descobriram?
GISELLINE – Foi apenas um acidente... um delicioso acidente.
CÍCERO – Arnaldo e Socorro, não pensem que me esqueci de vocês. Socorro, quais são os seus objetivos aqui na Cabana dos despertAmores?
SOCORRO – Só desejo salvar o meu casamento. Mas para que isso aconteça eu preciso descobrir uma outra forma, pois se eu for depender da ajuda do Arnaldo estou perdida!
CÍCERO – Arnaldo, quais são os seus objetivos na Cabana dos despertAmores?
ARNALDO – Salvar o meu casamento e...
CÍCERO – E...
ARNALDO – Conseguir informações suficientes para escrever uma matéria, desmascarando a grande farsa montada por Cícero Dominical.
SOCORRO – Arnaldo, você me enganou!
CÍCERO – Obrigado por sua sinceridade, Arnaldo. Fico lisonjeado por você confiar tanto em mim!
(Entram GULLIVER TRÊS PERNAS e WLADIMIR TOUPEIRA).
MENEGAL – Mestre, os nossos homens chegaram!
CÍCERO – Senhoras e senhores despertAmores, como vocês devem ter lido em meus livros Seja fiel, mesmo sendo
casado ou então o best-seller Ainda não é hora de assassinar o seu parceiro, muitas vezes é difícil lidar com o dia a dia de um casamento. Muitas vezes somos tentados por atitudes autodestrutivas e acabamos ferindo aqueles a quem desejamos amar. Por que os casamentos falham? Porque privilegiamos outros interesses que não o amor! Vejamos alguns exemplos. Meu querido Gulliver, você já foi casado?
GULLIVER – Já.
CÍCERO – Por acaso, você assassinou a sua esposa?
GULLIVER – Quem contou?
CÍCERO – Não é um exemplo dos melhores. E você, Wladimir, alguma vez já foi casado?
WLADIMIR – Sim, senhor.
CÍCERO – Você assassinou a sua parceira?
WLADIMIR – Evidente que não!
CÍCERO – Vêem só? Este é o exemplo que procuro. Por que você não a matou, meu rapaz?
WLADIMIR – Porque ela morreu.
SOCORRO – Pobrezinha. Morreu de quê?
WLADIMIR – Ela ficou doente. Quando já estava nas últimas, ela ficava só balindo e balindo...
CÍCERO – Balindo? Isso significa dizer que você era casado com uma cabra!
WLADIMIR – O senhor não está muito longe da verdade, não.
CÍCERO – Retirem-se, rapazes. Se precisarmos de seus serviços, vocês serão avisados.
GULLIVER – Precisando é só chamar. Nós fazemos tudo quanto é serviço.
(Saem GULLIVER TRÊS PERNAS e WLADIMIR TOUPEIRA).
CÍCERO – Como puderam observar, meus passarinhos, a estrutura do casamento clássico apresenta falhas gritantes, pois aprisiona o casal em comportamentos restritivos, como por exemplo a falta de criatividade ou a fidelidade obrigatória. Pensem comigo, meus despertAmores, um relacionamento baseado no amor incondicional não impõe condições, não realiza cobranças. Assim, se livrarmos de fato o amor das amarras emocionais e até mesmo sociais, a criatividade a dois flui e a fidelidade se torna um desejo, uma opção muito agradável. O amor verdadeiro liberta, fazendo com que o hábito humano de nunca estar satisfeito se dilua. Que delícia é saborear a alma de nossa parceira ou de nosso parceiro! Meus despertAmores, o casamento é um terror, a não ser que seja com muito amor!
GISELLINE – Mas quanto à solidão? Eu não desejo viver neste mundo sozinha!
CATARINA – É verdade, a barraqueira tem razão. O medo da solidão me dilacera!
GISELLINE – Não vou me rebaixar mais! Vamos manter este diálogo em alto nível, por favor.
LELO – Isso mesmo, Gigi. Mantenha a elegância!
GISELLINE – Eu sou superior a essas questões de território. (Descontrolando-se momentaneamente). Ouviu bem, sua galinha, ladra de maridos...?
CATARINA – Pelo menos eu não sou covarde. Pelo menos eu tenho coragem de assumir o meu desejo.
MANUELA – (Em tom baixo, porém rígido) Catarina, segure a sua onda! Esta história já está passando dos limites.
CÍCERO – Manuela tem toda a razão, minhas libélulas. Acalmem-se, por favor.
MENEGAL – Assim não dá, meus amigos! Parecem adolescentes no cio!
LELO – Eu não tenho nada a ver com isso. É compreensível que as pessoas percam o controle se não estão bem
resolvidas com os seus desejos mais profundos.
CÍCERO – (Para si mesmo) Não é que esta besta tem razão?
LELO – O que foi?
CÍCERO – Eu disse que todos nós temos medo da solidão.
MENEGAL – Mestre, veja, a Socorro está em transe!
ARNALDO – Santo Deus, ela está tendo outra alucinação!
CÍCERO – Que ela fique em paz, pois os Espíritos Que Observam a estão protegendo!
MENEGAL – Pobre moça! O que estará se passando em sua mente?
(De modo repentino, a iluminação se torna mais sombria. ARNALDO e MANUELA se encontram destacados do restante à frente do grupo. Foco neles. Os outros personagens permanecem imóveis, à exceção de Socorro que observa o encontro).
ARNALDO – Como foi bom conhecer você, Manuela! De todas as pessoas que aqui estão, você é a única que me intriga, que causa em mim um desejo de profundidade.
MANUELA – Arnaldo, se você não fosse homem, você seria perfeito!
SOCORRO – O que está acontecendo, Arnaldo? (Silêncio).
ARNALDO – (Cheio de soberba) Somos tão inteligentes! Somos tão deliciosamente superiores a essa gente mesquinha que só consegue se preocupar com o próprio gozo!
SOCORRO – Arnaldo, estou falando com você!
MANUELA – Nós somos os verdadeiros despertAmores! Nós compreendemos a alma humana por completo! Nós somos Mestres do Universo, pois descobrimos a fórmula da paixão e nos deliciamos com ela! Nós somos o sentido da vida, pois somos o amor! Nós somos amorosamente superiores!!!
ARNALDO – Eu amo você, Manuela!
MANUELA – Você deveria ter nascido mulher, Arnaldo!
(Beijam-se com ardor).
SOCORRO – (Em desespero) Arnaldo, o que você está fazendo? Pare com isso!!!
(A iluminação volta a ser o que era. ARNALDO e MANUELA retornam aos lugares que ocupavam antes. Os outros
personagens adquirem vida).
SOCORRO – Pare com isso, Arnaldo!!! Pare com isso!
ARNALDO – (Abraçando-a carinhosamente) Estou aqui, amor. Estou aqui. Sou eu, o Arnaldo. Fique calma.
SOCORRO – (Trêmula) Arnaldo, você me ama?
ARNALDO – Claro, Socorro. Claro que eu amo você!
GISELLINE – Desequilibrada ela, não é mesmo?
CÍCERO – É melhor fazermos uma pausa, meus passarinhos. As emoções que nos habitam nem sempre se mostram gentis!
MENEGAL – Socorro, eu tenho comigo algumas cápsulas de alegria, mais um produto patenteado do Laboratório
Farmacêutico Cícero Dominical. Você pode tomá-las, se assim desejar. Garanto que você vai se sentir bem melhor!
CÍCERO – Faça o que Menegal recomenda, minha pequena mariposa! Os seus medos não a perturbarão por um bom
tempo. Quanto aos demais, reflitam! Senhoras e senhores, o amor ainda é possível, mesmo com a televisão e com a
Internet que tornam as pessoas prisioneiras de sua própria solidão. O amor ainda é possível, seja com um homem, com uma mulher ou com uma cabra. Busquem em vocês. Mergulhem em si mesmos. Agora, vamos descansar um pouco os nossos corações e as nossas mentes, despertAmores!

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