Cena da peça Coleção de centauros

De Rafa Lima

CENA 4

(Uma praça pública. Corneta. Tambores. Entram dois GUARDAS).

PRIMEIRO GUARDA - (Falando com a platéia) Povo da população, gente humilde que paga miseravelmente os seus impostos, pessoas modestas que estão restritas à marginalidade e, por fim, seres simples que ignoram o poder, preparai vossas aclamações, pois o governador está próximo.

SEGUNDO GUARDA - Vossa Incompetência, o governador, exige a vossa atenção. Preparem-se, o governador está chegando, montado em sua sabedoria infinita.
(Entra o GOVERNADOR, seguido pelo BRUXO e pelo MÉDICO).

GOVERNADOR - (Para a platéia) Cidadãos da cidade, eu sou o governador. É verdade que vocês já tem conhecimento disto, mas eu sou o governador. A obediência de todos é exigida por lei, o que também é uma verdade, porém eu sou o governador. Digo isto apenas para lembrar que eu sou o governador. Quer dizer, como diz a palavra, eu governo a dor. Todas as dores deste estado me pertencem. No entanto, em todas as nações do mundo, há ratos. Estes pequenos felinos estão infiltrados em nossas casas, no meio do nosso povo, para destruir a unidade familiar e hierárquica que, por ordem divina, nos rege. Como diria Charlie Chaplin, o patrono dos Vikings: “Há algo de podre no reino da...”. Qual era mesmo o reino?

PRIMEIRO GUARDA - Sibéria.

SEGUNDO GUARDA - Nada disso, era Indonésia.

PRIMEIRO GUARDA - Que cortem minha cabeça fora, se não era Sibéria.

BRUXO - Silêncio, idiotas. Meu senhor, Charlie Chaplin ainda não nasceu.

GOVERNADOR - Ah, não? Ah, sim. Lembrei: “Há algo de podre no reino de Madagascar”, ele dizia. Estou tentando dizer, o que as suas mentes limitadas provavelmente ainda não entenderam, que existe um traidor entre nós. Todos devem estar estranhando a minha presença nesta praça fétida e mal conservada pelos nossos governantes, mas existe uma boa razão. Para o bem-estar dos concidadãos, conclamo a presença do cidadão número... Qual é o número?

BRUXO - Mil trezentos e catorze, senhor.

GOVERNADOR - Conclamo a presença do cidadão 1314. Agora! A desobediência à autoridade está sujeita à pena de morte.

(Entra o CIDADÃO 1314, vindo da platéia)

CIDADÃO 1314 - Aqui estou, Vossa Incompetência.

GOVERNADOR - Ouviu, meu bom bruxo? Até o povo já aprendeu o tratamento correto para se usar com o governador.

BRUXO - O povo apenas repete. O povo não pensa, ou melhor, o povo não deve pensar, só deve repetir.

GOVERNADOR - Sábias palavras. (Para o Cidadão 1314) É exatamente por isso que o chamei aqui. Como pude ver, você é um excelente repetidor. No entanto, existem rumores de que você, mesmo com a sua aparência hedionda, que mais parece um espantalho, estaria difundindo pensamentos entre a população. Diga-me, você pensa?

CIDADÃO 1314 - Senhor, a única coisa que fiz foi tentar criar melhores condições para nossas famílias pobres. Meus pensamentos buscavam evitar que o povo morresse de fome.

GOVERNADOR - Mentira! Seu sacripantas, seus pensamentos queriam desafiar o governador. Se é verdade que o povo morre de fome, o que não é verdade, então como você conseguia elaborar as suas idéias? Quem tem fome, não tem forças para pensar. Por isso, os passarinhos são tão inteligentes. Alguém aqui já viu um passarinho morrer de fome? Nunca, em tempo algum. Preste atenção, criatura das profundezas, pensar é para os pássaros.

CIDADÃO 1314 - Como governador, o senhor é um bom patife.

GOVERNADOR - Todos estão ouvindo. O governador foi insultado na sua própria presença. Eu deveria liberar sobre este miserável ser toda a minha cólera, mas não vou fazer isto. Por esta razão, está em minha companhia um médico inigualável, um curandeiro poderoso. Doutor, eis o seu paciente.

MÉDICO - Pobre indivíduo. A vida não lhe foi grata, não é mesmo? Sua esposa deve ter chorado uma tempestade de lágrimas, todos esses anos. O inevitável aconteceu. Responda-me, você é louco?

CIDADÃO 1314 - Não, senhor.

MÉDICO - Você está louco?

CIDADÃO 1314- Ainda não, senhor.

MÉDICO - Você pode me provar que não está louco?

CIDADÃO 1314 - Como assim?

MÉDICO - Já que não está louco, prove.

CIDADÃO 1314- Provar? Eu tenho dois olhos, um nariz, uma boca. Sinto frio, quando está frio e sinto calor, quando está quente. Durante a noite, eu durmo e, quando o sol se levanta, eu acordo. Amo a minha família e faço os meus sacrifícios aos deuses...

MÉDICO - É o bastante.

GOVERNADOR - Qual é o seu diagnóstico, doutor?

MÉDICO - Está louco.

CIDADÃO 1314 - O quê?

MÉDICO - Apenas um louco tentaria provar a sua sanidade. (Sussurrando para o governador) Este método é infalível. Os loucos não têm escapatória.

GOVERNADOR - Guardas, prendam o louco. (Os guardas imobilizam e amordaçam o cidadão 1314) Levem-no daqui. Não, esperem, eu vou junto. Uma última palavrinha com o povo. (Para platéia) Como podem ver, o governador agiu rápido novamente na caçada aos ratos. Podem ficar tranqüilos e voltar a viver as suas intermináveis vidas. Por fim, não se metam com os gauleses. (Sai, seguido pelo BRUXO e pelo MÉDICO).

PRIMEIRO GUARDA - Amem as leis e obedeçam o governador.

SEGUNDO GUARDA - É o contrário. Amem o governador e obedeçam as leis. (Saem discutindo, levando o CIDADÃO 1314. Entram uma MOÇA e um RAPAZ, vindos da platéia).

MOÇA - Veja, estão levando o rapaz preso.

RAPAZ - Pelos deuses, foram ordens do governador.

MOÇA - Mas o que fez ele de mal? Só estava organizando um grupo para recolher mantimentos.

RAPAZ - Você não viu? O pobre diabo está louco. Por melhor que fosse a sua intenção, ele não podia permanecer em liberdade. Nossas vidas estariam em risco. Ainda por cima, eu o ouvi diversas vezes falando para o povo contra o governador.

MOÇA - Eu também ouvi, mas eles irão matá-lo.

RAPAZ - De maneira nenhuma. Se fosse para matá-lo, trariam um carrasco e não um médico.

MOÇA - Será que você não percebe?

RAPAZ - Perceber? Não há nada para se perceber. O governador agiu antes que uma desgraça caísse sobre nós.

MOÇA - O que poderia acontecer?

RAPAZ - Não sei ao certo... Você está desconfiando do governador?

MOÇA - Não é nada disso. Só estou tentando dizer que eles não deixam e não querem que nós sejamos quem realmente somos. No dia em que nós nascemos, eles determinaram o caminho de nossas vidas, criando situações que não possam mudá-lo. Se alguém nasce no castelo, sobre uma cama enorme, no meio de lençóis de cetim, fica determinado que esta pessoa vai viver coberta de ouro, comendo três leitões por dia e bebendo vinho da melhor qualidade. No entanto, se alguém nasce no meio do povo, seguindo o raciocínio dos poderosos que nunca farão nada em seu benefício, a não ser esperar a sua morte, fica condenado à fome e à miséria. Agora entendo tudo.

RAPAZ - Do que você está falando?

MOÇA - Que nós devemos buscar o nosso próprio caminho. Nós não precisamos que outras pessoas digam quem nós somos e como devemos agir.

RAPAZ - Pare com isso! Você está me assustando.

MOÇA - Não precisa ter medo. Nada pode acontecer de mal, pois eu tenho a verdade dentro de mim.

RAPAZ - Nossa, eu nunca te vi falar deste jeito.

MOÇA - Não é maravilhoso?

RAPAZ - O que você está pensando em fazer?

MOÇA - Nós vamos reunir o povo, aqui mesmo na praça, e contar esta minha descoberta.

RAPAZ - E quanto ao governador?

MOÇA - Ele vai se sentir aliviado de não ter que se responsabilizar mais pelo povo. Na verdade, o povo nunca foi uma de suas maiores preocupações. Provavelmente, ele vai ficar indiferente a tudo que estiver acontecendo por aqui.

RAPAZ - No caso do cidadão 1314, ele não ficou indiferente.

MOÇA - Este era um caso de loucura. O governador tinha que tomar uma atitude. Só Deus sabe o que um louco solto pelas ruas é capaz de fazer. Lá no castelo, ele estará em segurança. Todos os loucos estão lá mesmo.

RAPAZ - Você, falando desta maneira, faz com que eu acredite que o mundo não é um lugar de sofrimentos e que a morte não é nossa melhor companheira... Nós vamos nos encontrar perto do lago esta noite?

MOÇA - Talvez. Mas eu prometo que você ainda vai ser rico. Neste caso, nós não teremos que nos esconder para os nossos encontros. Tenho que ir. Você vai me ajudar?

RAPAZ - Farei tudo o que você quiser, dentro do limite da razão.

MOÇA - Então, adeus. Se você sentir a minha falta, pode ir ao lago esta noite. (Sai. O RAPAZ sorri e sai pelo lado oposto).

2 comentários:

Anônimo disse...

Até que enfim saiu!!!! que parto hein??!!Seu blog tá muito legal, a sua cara, irreverente como você.Comecei a ler hoje e tô muito curiosa pra ler o restante, vai ser aos poucos, falta de tempo!!!
Adorei esta cena e quando vou ler ou assistir toda a peça????? Pense nisso!!! Beijinhos e muito sucesso.
Rô.

Anônimo disse...

É verdade, essa peça pede uma remontagem.