Rafa Lima é escritor de romances, contos, peças, roteiros, quadrinhos e possivelmente bula de remédios, encartes de supermercados e discursos de candidatos a cargos públicos cuja posição permita o desvio de dinheiro público sem a revolta da população ou das autoridades, formado em Comunicação Social/Jornalismo, “hey, ho, coleguinhas!”, explorador de mulheres (embora insista no papel de romântico agridoce apaixonado pela mente, corpo e linguagem femininos, “burn, baby, burn!”, safado, sarcástico e muitos adjetivos a mais, gênio incompreendido pelos seus contemporâneos, modesto em exagero, sócio fundador da George Clooney´s Most Desirable Bachelors School, potencial psicopata, assassino em série frustrado, criador compulsivo, nascido em 14 de julho de 1978, morto em, não, não, ainda não morreu, só pretende morrer depois dos 114 anos de idade, a partir de 2092, enfim, um cara simples vulgo foda.
Roteiro de curtametragem O Reflexo de Alice
De Rafa Lima e Marcio Fonseca
ou, pelo menos...
não deveriam parecer o que não são".
William Shakespeare
(Créditos iniciais).
1. Interna. Teatro. Noite.
(Fim de ensaio. Natanael, o diretor, fala com o elenco que não aparece no quadro).
NATANAEL
_ Falta uma semana para a estréia. Gente, lembrem-se que antes do útero o ser humano conheceu o ego.
(A câmera prossegue em movimento e encontra Arthur e Gilberto cochichando em um canto).
GILBERTO
_ Fala, Arthur... Diz de uma vez. Pode dizer, cara.
ARTHUR (receoso)
_ Alice.
GILBERTO
_ O quê? A Alice?
ARTHUR
_ Agora confessa. Você já sabia!
GILBERTO
_ Juro que não. Vocês sempre foram amigos, mas nunca poderia imaginar que estivesse gostando dela.
ARTHUR (recriminando)
_ Fala baixo, Gilberto. Esta história não pode vazar, certo?
GILBERTO
_ Pode confiar em mim.
ARTHUR
_ Eu a conheço há tanto tempo e sei tão pouco sobre ela.
GILBERTO
_ Vocês estão aqui desde a criação da companhia, não é?
ARTHUR
_ Mas eu nunca me interessei por ela. Era apenas uma boa atriz. Você sabe, sempre fui muito fechado para as pessoas. Só me interessava o lado profissional. (Gilberto ri). Gilberto, você, que está na companhia há menos tempo, conhece melhor do que eu as pessoas aqui dentro. Mas não teve saída, só consigo pensar nela.
(Breve imagem de Alice com seu charme particular).
ARTHUR (enfeitiçado)
_ A Alice é maravilhosa.
(Surge Natanael).
NATANAEL
_ Quem é maravilhosa?
ARTHUR
_ A peça.
NATANAEL
_ Certo.
(O diretor se afasta).
GILBERTO
_ Por que você mentiu? O Natanael é teu amigo, além de teu diretor, ele é teu amigo. Não precisava ter mentido para ele. Aposto que ele ia te apoiar.
ARTHUR (sombrio)
_ Já fiz, não tem remédio.
2. Interna. Camarim. Noite.
(Movimento de câmera pegando o corpo de Alice de baixo para cima. Pés. Pernas, vestindo calça jeans. Fechando o
botão da calça. Umbigo. Abotoando o sutiã. Rosto de Alice. Reflexo dela no espelho. A imagem de Arthur surge no
espelho. Virada de câmera. Arthur, parado na porta do camarim, perplexo).
ALICE (neutra)
_ Arthur, será que você poderia chegar amanhã mais cedo? Eu gostaria de passar as nossas cenas.
(Arthur entra no camarim. Pára entre Alice e o reflexo dela no espelho).
ARTHUR
(em off): "Você é linda, por Deus, você é muito linda".
_ Amanhã?
ALICE
_ Você pode?
ARTHUR
(em off): "Eu te amo, eu te amo, eu te amo".
_ Claro.
(Ele pega uma bolsa e um livro sobre a bancada do camarim).
ALICE (vestindo uma blusa)
_ Que livro é este?
ARTHUR
_ Alice no país das maravilhas.
ALICE (sorrindo)
_ Que bonitinho. Conheço este livro de trás para a frente. (Pega a bolsa dela e beija o rosto de Arthur). Até amanhã. (Sai).
(Arthur fica olhando para o espelho vazio).
3. Interna e externa. Carro de Arthur. Noite.
(Joga a bolsa e o livro no banco do carona. Breve imagem de Alice repetida da cena 1. Chave na ignição. Arthur mordendo o seu lábio inferior. Troca de marcha. Sinal de trânsito com a luz amarela acesa. Pés cruzando a faixa de pedestre. Pé no acelerador. Alice, no meio da rua, virando-se surpresa na direção do carro. Fade out).
4. Externa. Rua. Noite.
(Arthur saindo do carro. Alice está estirada no chão, morta).
ARTHUR
_ Meu Deus!
(Corre em direção a ela).
ARTHUR
_ Morta. Alice, morta.
(Agacha-se diante dela. A expressão de seu rosto se transforma aos poucos, de um olhar fixo e assustado adquire um aspecto macabro).
ARTHUR (perturbado, porém estático)
_ Morta. Alice, morta.
5. Interna. Apartamento de Arthur. Manhã.
(Porta do apartamento sendo aberta. Entra Arthur, sujo de terra. Flash de Arthur, na noite passada, carregando o corpo de Alice nos braços em um terreno baldio. Arthur no banheiro se despindo. Flash de Arthur cavando uma cova. Arthur, no banho, ensaboando-se insistentemente. Flash de Natanael dizendo: "Antes do útero o ser humano conheceu o ego". Arthur diante do espelho).
ARTHUR
_ Eu não tive culpa.
6. Interna. Teatro. Noite.
(Natanael no centro do palco fala com o elenco que não aparece no quadro).
NATANAEL (enfurecido)
_ Não sou babá dos atores. Se a Alice não aparecer até o fim do ensaio, ela está fora da peça! Já estou pensando em remanejar os personagens femininos.
7. Interna. Camarim. Noite.
(Movimento de câmera pegando o corpo de Arthur de baixo para cima. Pés. Pernas, vestindo calça jeans. Fechando o botão da calça. Vestindo uma camiseta, ao fundo, o espelho está coberto com um pano preto. Rosto de Arthur. Virada de câmera. Clara, parada na porta).
CLARA
_ O que você vai fazer agora?
ARTHUR
_ Nada. Vou para casa... você sabe o que aconteceu com o espelho?
CLARA
_ Alguém quebrou... Quer ir dançar comigo?
ARTHUR (seco)
_ Não.
CLARA
_ Não?
ARTHUR
_ Não quero dançar. Estou cansado.
CLARA
_ Arthur, vamos aproveitar que o Natanael terminou o ensaio mais cedo.
ARTHUR
_ Não quero.
CLARA
_ Tem comida na sua casa?
ARTHUR
_ Não.
CLARA
_ Então, você vai jantar lá em casa.
ARTHUR
_ Não precisa se incomodar comigo.
CLARA
_ Não vai ser incômodo algum.
(Clara sorri de maneira insinuante).
8. Interna. Apartamento de Clara. Noite.
(Som da campainha da porta).
CLARA
_ O rapaz da pizza chegou. Você tem dinheiro?
ARTHUR
_ Tenho.
CLARA
_ Ainda bem. Acho que esqueci a minha carteira no teatro, você acredita?
ARTHUR
_ Não.
CLARA
_ É verdade. Eu ando bem esquecida ultimamente.
ARTHUR
_ Sinal de que você precisa parar de fumar maconha.
CLARA
_ Engraçadinho.
(Clara abre a porta. Aparece o entregador de pizza).
ENTREGADOR DE PIZZA
_ Pizza literária. Satisfação para a sua barriga e alimento para a sua mente.
(Entrega a embalagem de pizza para Clara).
CLARA (Para Arthur)
_ Adoro a idéia desta pizzaria. Parece um biscoitinho chinês. Vem sempre com uma mensagem dentro.
ENTREGADOR DE PIZZA
_ São catorze contos, senhora.
CLARA (Para o entregador)
_ Você continua escrevendo os seus poemas?
ENTREGADOR DE PIZZA
_ Sempre que posso, senhora. Obrigado e bom apetite.
9. Interna. Apartamento de Clara. Noite.
(Clara e Arthur acabaram de comer a pizza. Ela está lendo a mensagem literária da pizzaria em um pedaço de papel).
CLARA
_ Esta mensagem nunca foi tão perfeita. Você leu?
ARTHUR
_ Não.
(Clara entrega o papel a Arthur).
ARTHUR (lendo)
_ Os homens deviam ser aquilo que parecem ou, pelo menos, não deveriam parecer o que não são. William Shakespeare.
CLARA
_ Bem apropriada. Você não acha?
ARTHUR
_ Aonde você pretende chegar?
CLARA
_ Você parece um, mas na verdade é outro.
ARTHUR
_ Como assim?
CLARA
_ O que você fez com o corpo dela?
ARTHUR (pasmo)
_ O quê?
CLARA
_ Não se assuste. Eu sei o que aconteceu. Eu estava saindo do teatro, quando você a atropelou.
ARTHUR (perplexo)
_ Por que você não me ajudou?
CLARA
_ Porque você estava se saindo muito bem. Foi de propósito?
ARTHUR (ultrajado)
_ O quê?
CLARA
_ Foi intencional?
ARTHUR
_ Você é doente!
CLARA
_ No entanto, foi você quem a matou.
ARTHUR (em desespero)
_ Foi sem querer. Eu não a vi.
CLARA
_ O que você fez com o corpo dela?
ARTHUR
_ Não vou dizer.
CLARA
_ Tudo bem. O personagem já é meu mesmo. Não tenho com o que me preocupar.
ARTHUR
_ Você acha que o Natanael vai mesmo estrear sem a Alice?
CLARA
_ Claro, ele já remanejou o elenco. Além disso, ele nem desconfia de que a Alice está morta. (Irônica). Você vai contar para ele?
ARTHUR
_ Óbvio que não.
CLARA
_ Eu também não vou. Pode acreditar.
(Clara senta no colo de Arthur).
CLARA
_ Você deve estar me achando uma escrota. Eu não sou nada disso. Apenas não gostava dela e não sou hipócrita de
fingir o contrário.
(Clara beija Arthur).
CLARA
_ Eu te amo, Arthur.
10. Interna. Quarto de Clara. Noite.
(Clara e Arthur, nus, na cama da moça. Ela está sobre ele. Ele a abraça).
CLARA (sussurrando)
_ Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!
11. Interna. Quarto de Clara. Manhã.
(Clara acorda e percebe que está sozinha na cama. Levanta-se e devagar procura Arthur pela casa. A câmera percorre com Clara os cômodos da casa, quarto, banheiro, cozinha. Por um momento, Clara pára na sala. Vira-se de costas para retornar ao quarto, mas a porta do apartamento se abre. Entra Arthur com um jornal e um saco de pão. Ela caminha até ele, sorrindo).
CLARA
_ Bom dia.
12. Interna. Teatro. Noite.
(Close up na atriz)
ATRIZ (gritando)
_ Elenco, no palco!
(Abre câmera. Arthur, Clara e Gilberto entram esbaforidos. Natanael aparece sentado na primeira fileira do teatro).
NATANAEL (desorientado e sério)
_ Gente, eu tenho uma notícia ruim e outra pior para dizer. Qual vocês querem primeiro?
GILBERTO (riso nervoso)
_ A ruim.
NATANAEL
_ A peça está cancelada.
(Os atores esboçam reações sem muita firmeza).
NATANAEL
_ A pior é que encontraram a Alice. Ela está morta. Encontraram o corpo dela enterrado em um terreno baldio.
(Clara e Arthur trocam olhares sutis).
GILBERTO
_ Como ela morreu?
NATANAEL
_ A polícia ainda não sabe. Levaram o corpo para a autópsia. Aliás, tem gente aqui querendo falar com um de vocês.
(Dois policiais aparecem na beira do palco).
PRIMEIRO POLICIAL (apontando para o palco sem que se veja os atores).
_ Você, tenha a gentileza de nos acompanhar até a delegacia.
CLARA
_ Eu?
SEGUNDO POLICIAL
_ Você é Clara Kiryakov?
CLARA
_ Sou.
PRIMEIRO POLICIAL
_ Você está presa pelo assassinato de Alice Fonseca Lima.
(O segundo policial algema Clara).
CLARA (abismada)
_ O que é isso? Vocês não podem... me larga, não têm o direito.
GILBERTO
_ Vocês têm provas?
SEGUNDO POLICIAL
_ Sim, filho, temos provas.
CLARA (desconfiada)
_ Quais provas?
SEGUNDO POLICIAL
_ Você cometeu um erro. Deixou a sua carteira com seus documentos cair no chão, próximo ao local onde enterrou o corpo.
CLARA (percebendo a armadilha)
_ O quê? (apontando com o queixo para Arthur) Foi ele!!!! Foi ele quem a matou e quem pôs os meus documentos lá para me incriminar.
ARTHUR (dissimulado)
_ O que é isso, Clara?
CLARA
_ Foi ele!!! Foi ele!!!
PRIMEIRO POLICIAL
_ É bom você se explicar, rapaz.
ARTHUR
_ Eu? Esta mulher é louca. Está querendo colocar a culpa em outro para se safar.
PRIMEIRO POLICIAL
_ Você tem alguma ligação com a história?
ARTHUR
_ Nenhuma.
PRIMEIRO POLICIAL
_ O que você fez esta semana?
NATANAEL (interrompendo)
_ Senhores, este interrogatório não é necessário. Durante toda a semana, este jovem passou as noites comigo.
(Perplexidade geral. Rostos constrangidos).
PRIMEIRO POLICIAL
_ Certo.
(Os dois policiais levam Clara para fora do teatro que grita incessantemente: "É mentira, foi ele!!!". Natanael se apressa em abandonar o palco em direção ao camarim. Arthur o segue).
13. Interna. Camarim. Noite.
(Natanael está sentado em frente ao espelho coberto pelo pano preto. Entra Arthur).
ARTHUR (comedido)
_ Por que você mentiu?
NATANAEL
_ Porque era o mais certo.
ARTHUR
_ O mais certo?
NATANAEL
_ Você já tem bastante sofrimento dentro de você.
ARTHUR
_ Como assim?
NATANAEL
_ Eu sei que você amava a Alice. Ouvi você conversando com o Gilberto. Tenho um bom olho. Eu menti, porque a justiça é muito confusa. Você não podia ser punido por amar a Alice.
ARTHUR
_ O que vai acontecer a Clara?
NATANAEL
_ Provavelmente, na delegacia vão arrancar a confissão dela, de um jeito ou de outro. Talvez algum advogado a convença a contar a verdade para reduzir a pena.
ARTHUR
_ Ou, então, a verdade vai aparecer sozinha.
NATANAEL
_ O que você quer dizer?
ARTHUR
_ Que ninguém sabe o que de fato aconteceu.
(Aproxima-se do diretor e aperta a sua mão).
ARTHUR (sincero)
_ Obrigado.
14. Externa. Rua. Noite.
(Arthur caminha pela rua sem compromisso. A lua crescente aparece no quadro).
_ Parece o sorriso do gato de Alice.
(Arthur sorri).
(Créditos finais).
Citação:
"Os homens deviam ser aquilo que parecem...ou, pelo menos...
não deveriam parecer o que não são".
William Shakespeare
(Créditos iniciais).
1. Interna. Teatro. Noite.
(Fim de ensaio. Natanael, o diretor, fala com o elenco que não aparece no quadro).
NATANAEL
_ Falta uma semana para a estréia. Gente, lembrem-se que antes do útero o ser humano conheceu o ego.
(A câmera prossegue em movimento e encontra Arthur e Gilberto cochichando em um canto).
GILBERTO
_ Fala, Arthur... Diz de uma vez. Pode dizer, cara.
ARTHUR (receoso)
_ Alice.
GILBERTO
_ O quê? A Alice?
ARTHUR
_ Agora confessa. Você já sabia!
GILBERTO
_ Juro que não. Vocês sempre foram amigos, mas nunca poderia imaginar que estivesse gostando dela.
ARTHUR (recriminando)
_ Fala baixo, Gilberto. Esta história não pode vazar, certo?
GILBERTO
_ Pode confiar em mim.
ARTHUR
_ Eu a conheço há tanto tempo e sei tão pouco sobre ela.
GILBERTO
_ Vocês estão aqui desde a criação da companhia, não é?
ARTHUR
_ Mas eu nunca me interessei por ela. Era apenas uma boa atriz. Você sabe, sempre fui muito fechado para as pessoas. Só me interessava o lado profissional. (Gilberto ri). Gilberto, você, que está na companhia há menos tempo, conhece melhor do que eu as pessoas aqui dentro. Mas não teve saída, só consigo pensar nela.
(Breve imagem de Alice com seu charme particular).
ARTHUR (enfeitiçado)
_ A Alice é maravilhosa.
(Surge Natanael).
NATANAEL
_ Quem é maravilhosa?
ARTHUR
_ A peça.
NATANAEL
_ Certo.
(O diretor se afasta).
GILBERTO
_ Por que você mentiu? O Natanael é teu amigo, além de teu diretor, ele é teu amigo. Não precisava ter mentido para ele. Aposto que ele ia te apoiar.
ARTHUR (sombrio)
_ Já fiz, não tem remédio.
2. Interna. Camarim. Noite.
(Movimento de câmera pegando o corpo de Alice de baixo para cima. Pés. Pernas, vestindo calça jeans. Fechando o
botão da calça. Umbigo. Abotoando o sutiã. Rosto de Alice. Reflexo dela no espelho. A imagem de Arthur surge no
espelho. Virada de câmera. Arthur, parado na porta do camarim, perplexo).
ALICE (neutra)
_ Arthur, será que você poderia chegar amanhã mais cedo? Eu gostaria de passar as nossas cenas.
(Arthur entra no camarim. Pára entre Alice e o reflexo dela no espelho).
ARTHUR
(em off): "Você é linda, por Deus, você é muito linda".
_ Amanhã?
ALICE
_ Você pode?
ARTHUR
(em off): "Eu te amo, eu te amo, eu te amo".
_ Claro.
(Ele pega uma bolsa e um livro sobre a bancada do camarim).
ALICE (vestindo uma blusa)
_ Que livro é este?
ARTHUR
_ Alice no país das maravilhas.
ALICE (sorrindo)
_ Que bonitinho. Conheço este livro de trás para a frente. (Pega a bolsa dela e beija o rosto de Arthur). Até amanhã. (Sai).
(Arthur fica olhando para o espelho vazio).
3. Interna e externa. Carro de Arthur. Noite.
(Joga a bolsa e o livro no banco do carona. Breve imagem de Alice repetida da cena 1. Chave na ignição. Arthur mordendo o seu lábio inferior. Troca de marcha. Sinal de trânsito com a luz amarela acesa. Pés cruzando a faixa de pedestre. Pé no acelerador. Alice, no meio da rua, virando-se surpresa na direção do carro. Fade out).
4. Externa. Rua. Noite.
(Arthur saindo do carro. Alice está estirada no chão, morta).
ARTHUR
_ Meu Deus!
(Corre em direção a ela).
ARTHUR
_ Morta. Alice, morta.
(Agacha-se diante dela. A expressão de seu rosto se transforma aos poucos, de um olhar fixo e assustado adquire um aspecto macabro).
ARTHUR (perturbado, porém estático)
_ Morta. Alice, morta.
5. Interna. Apartamento de Arthur. Manhã.
(Porta do apartamento sendo aberta. Entra Arthur, sujo de terra. Flash de Arthur, na noite passada, carregando o corpo de Alice nos braços em um terreno baldio. Arthur no banheiro se despindo. Flash de Arthur cavando uma cova. Arthur, no banho, ensaboando-se insistentemente. Flash de Natanael dizendo: "Antes do útero o ser humano conheceu o ego". Arthur diante do espelho).
ARTHUR
_ Eu não tive culpa.
6. Interna. Teatro. Noite.
(Natanael no centro do palco fala com o elenco que não aparece no quadro).
NATANAEL (enfurecido)
_ Não sou babá dos atores. Se a Alice não aparecer até o fim do ensaio, ela está fora da peça! Já estou pensando em remanejar os personagens femininos.
7. Interna. Camarim. Noite.
(Movimento de câmera pegando o corpo de Arthur de baixo para cima. Pés. Pernas, vestindo calça jeans. Fechando o botão da calça. Vestindo uma camiseta, ao fundo, o espelho está coberto com um pano preto. Rosto de Arthur. Virada de câmera. Clara, parada na porta).
CLARA
_ O que você vai fazer agora?
ARTHUR
_ Nada. Vou para casa... você sabe o que aconteceu com o espelho?
CLARA
_ Alguém quebrou... Quer ir dançar comigo?
ARTHUR (seco)
_ Não.
CLARA
_ Não?
ARTHUR
_ Não quero dançar. Estou cansado.
CLARA
_ Arthur, vamos aproveitar que o Natanael terminou o ensaio mais cedo.
ARTHUR
_ Não quero.
CLARA
_ Tem comida na sua casa?
ARTHUR
_ Não.
CLARA
_ Então, você vai jantar lá em casa.
ARTHUR
_ Não precisa se incomodar comigo.
CLARA
_ Não vai ser incômodo algum.
(Clara sorri de maneira insinuante).
8. Interna. Apartamento de Clara. Noite.
(Som da campainha da porta).
CLARA
_ O rapaz da pizza chegou. Você tem dinheiro?
ARTHUR
_ Tenho.
CLARA
_ Ainda bem. Acho que esqueci a minha carteira no teatro, você acredita?
ARTHUR
_ Não.
CLARA
_ É verdade. Eu ando bem esquecida ultimamente.
ARTHUR
_ Sinal de que você precisa parar de fumar maconha.
CLARA
_ Engraçadinho.
(Clara abre a porta. Aparece o entregador de pizza).
ENTREGADOR DE PIZZA
_ Pizza literária. Satisfação para a sua barriga e alimento para a sua mente.
(Entrega a embalagem de pizza para Clara).
CLARA (Para Arthur)
_ Adoro a idéia desta pizzaria. Parece um biscoitinho chinês. Vem sempre com uma mensagem dentro.
ENTREGADOR DE PIZZA
_ São catorze contos, senhora.
CLARA (Para o entregador)
_ Você continua escrevendo os seus poemas?
ENTREGADOR DE PIZZA
_ Sempre que posso, senhora. Obrigado e bom apetite.
9. Interna. Apartamento de Clara. Noite.
(Clara e Arthur acabaram de comer a pizza. Ela está lendo a mensagem literária da pizzaria em um pedaço de papel).
CLARA
_ Esta mensagem nunca foi tão perfeita. Você leu?
ARTHUR
_ Não.
(Clara entrega o papel a Arthur).
ARTHUR (lendo)
_ Os homens deviam ser aquilo que parecem ou, pelo menos, não deveriam parecer o que não são. William Shakespeare.
CLARA
_ Bem apropriada. Você não acha?
ARTHUR
_ Aonde você pretende chegar?
CLARA
_ Você parece um, mas na verdade é outro.
ARTHUR
_ Como assim?
CLARA
_ O que você fez com o corpo dela?
ARTHUR (pasmo)
_ O quê?
CLARA
_ Não se assuste. Eu sei o que aconteceu. Eu estava saindo do teatro, quando você a atropelou.
ARTHUR (perplexo)
_ Por que você não me ajudou?
CLARA
_ Porque você estava se saindo muito bem. Foi de propósito?
ARTHUR (ultrajado)
_ O quê?
CLARA
_ Foi intencional?
ARTHUR
_ Você é doente!
CLARA
_ No entanto, foi você quem a matou.
ARTHUR (em desespero)
_ Foi sem querer. Eu não a vi.
CLARA
_ O que você fez com o corpo dela?
ARTHUR
_ Não vou dizer.
CLARA
_ Tudo bem. O personagem já é meu mesmo. Não tenho com o que me preocupar.
ARTHUR
_ Você acha que o Natanael vai mesmo estrear sem a Alice?
CLARA
_ Claro, ele já remanejou o elenco. Além disso, ele nem desconfia de que a Alice está morta. (Irônica). Você vai contar para ele?
ARTHUR
_ Óbvio que não.
CLARA
_ Eu também não vou. Pode acreditar.
(Clara senta no colo de Arthur).
CLARA
_ Você deve estar me achando uma escrota. Eu não sou nada disso. Apenas não gostava dela e não sou hipócrita de
fingir o contrário.
(Clara beija Arthur).
CLARA
_ Eu te amo, Arthur.
10. Interna. Quarto de Clara. Noite.
(Clara e Arthur, nus, na cama da moça. Ela está sobre ele. Ele a abraça).
CLARA (sussurrando)
_ Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!
11. Interna. Quarto de Clara. Manhã.
(Clara acorda e percebe que está sozinha na cama. Levanta-se e devagar procura Arthur pela casa. A câmera percorre com Clara os cômodos da casa, quarto, banheiro, cozinha. Por um momento, Clara pára na sala. Vira-se de costas para retornar ao quarto, mas a porta do apartamento se abre. Entra Arthur com um jornal e um saco de pão. Ela caminha até ele, sorrindo).
CLARA
_ Bom dia.
12. Interna. Teatro. Noite.
(Close up na atriz)
ATRIZ (gritando)
_ Elenco, no palco!
(Abre câmera. Arthur, Clara e Gilberto entram esbaforidos. Natanael aparece sentado na primeira fileira do teatro).
NATANAEL (desorientado e sério)
_ Gente, eu tenho uma notícia ruim e outra pior para dizer. Qual vocês querem primeiro?
GILBERTO (riso nervoso)
_ A ruim.
NATANAEL
_ A peça está cancelada.
(Os atores esboçam reações sem muita firmeza).
NATANAEL
_ A pior é que encontraram a Alice. Ela está morta. Encontraram o corpo dela enterrado em um terreno baldio.
(Clara e Arthur trocam olhares sutis).
GILBERTO
_ Como ela morreu?
NATANAEL
_ A polícia ainda não sabe. Levaram o corpo para a autópsia. Aliás, tem gente aqui querendo falar com um de vocês.
(Dois policiais aparecem na beira do palco).
PRIMEIRO POLICIAL (apontando para o palco sem que se veja os atores).
_ Você, tenha a gentileza de nos acompanhar até a delegacia.
CLARA
_ Eu?
SEGUNDO POLICIAL
_ Você é Clara Kiryakov?
CLARA
_ Sou.
PRIMEIRO POLICIAL
_ Você está presa pelo assassinato de Alice Fonseca Lima.
(O segundo policial algema Clara).
CLARA (abismada)
_ O que é isso? Vocês não podem... me larga, não têm o direito.
GILBERTO
_ Vocês têm provas?
SEGUNDO POLICIAL
_ Sim, filho, temos provas.
CLARA (desconfiada)
_ Quais provas?
SEGUNDO POLICIAL
_ Você cometeu um erro. Deixou a sua carteira com seus documentos cair no chão, próximo ao local onde enterrou o corpo.
CLARA (percebendo a armadilha)
_ O quê? (apontando com o queixo para Arthur) Foi ele!!!! Foi ele quem a matou e quem pôs os meus documentos lá para me incriminar.
ARTHUR (dissimulado)
_ O que é isso, Clara?
CLARA
_ Foi ele!!! Foi ele!!!
PRIMEIRO POLICIAL
_ É bom você se explicar, rapaz.
ARTHUR
_ Eu? Esta mulher é louca. Está querendo colocar a culpa em outro para se safar.
PRIMEIRO POLICIAL
_ Você tem alguma ligação com a história?
ARTHUR
_ Nenhuma.
PRIMEIRO POLICIAL
_ O que você fez esta semana?
NATANAEL (interrompendo)
_ Senhores, este interrogatório não é necessário. Durante toda a semana, este jovem passou as noites comigo.
(Perplexidade geral. Rostos constrangidos).
PRIMEIRO POLICIAL
_ Certo.
(Os dois policiais levam Clara para fora do teatro que grita incessantemente: "É mentira, foi ele!!!". Natanael se apressa em abandonar o palco em direção ao camarim. Arthur o segue).
13. Interna. Camarim. Noite.
(Natanael está sentado em frente ao espelho coberto pelo pano preto. Entra Arthur).
ARTHUR (comedido)
_ Por que você mentiu?
NATANAEL
_ Porque era o mais certo.
ARTHUR
_ O mais certo?
NATANAEL
_ Você já tem bastante sofrimento dentro de você.
ARTHUR
_ Como assim?
NATANAEL
_ Eu sei que você amava a Alice. Ouvi você conversando com o Gilberto. Tenho um bom olho. Eu menti, porque a justiça é muito confusa. Você não podia ser punido por amar a Alice.
ARTHUR
_ O que vai acontecer a Clara?
NATANAEL
_ Provavelmente, na delegacia vão arrancar a confissão dela, de um jeito ou de outro. Talvez algum advogado a convença a contar a verdade para reduzir a pena.
ARTHUR
_ Ou, então, a verdade vai aparecer sozinha.
NATANAEL
_ O que você quer dizer?
ARTHUR
_ Que ninguém sabe o que de fato aconteceu.
(Aproxima-se do diretor e aperta a sua mão).
ARTHUR (sincero)
_ Obrigado.
14. Externa. Rua. Noite.
(Arthur caminha pela rua sem compromisso. A lua crescente aparece no quadro).
_ Parece o sorriso do gato de Alice.
(Arthur sorri).
(Créditos finais).
Cena da peça Os despertAmores
De Rafa Lima
CENA 5
(Cabana dos despertAmores. Os três casais aguardam a chegada dos guias espirituais).
ARNALDO – Quanto tempo mais esses mercenários nos farão esperar?
SOCORRO – Mais respeito, Arnaldo! Eles só querem nos ajudar.
MANUELA – Só se for para enriquecê-los!
CATARINA – Vocês são mesmo muito cínicos! Por que não vão embora de uma vez se estão descontentes?
LELO – Isso mesmo! Ninguém está obrigando ninguém a permanecer na cabana!
GISELLINE – Por que você está dando apoio a esta sirigaita, Lelo?
CATARINA – Quem é sirigaita?
GISELLINE – Você é sirigaita!
CATARINA – Lelo, controla essa sua mulher, senão eu vou descer a mão nessa grã-fina barraqueira!
GISELLINE – Quem te deu esta intimidade para falar assim com o meu marido, sua franguinha? Lelo, faça alguma coisa!
LELO – (Risonho) Elas me adoram! Desculpe, meninas, eu tento não ser tão atraente, mas é muito difícil para mim.
MANUELA – Esse é mais burro do que uma porta!
ARNALDO – Vai depender do tipo de porta que você está falando.
(Manuela e Arnaldo caem na gargalhada).
SOCORRO – Quer parar de se exibir, Arnaldo? (Aliviada). Até que enfim, lá vêm eles!
(Entram CÍCERO DOMINICAL e MENEGAL).
CÍCERO – Acalmem-se, meus passarinhos, acalmem-se! Como posso ver a nossa terapia em grupo já teve início de uma forma bastante promissora. As cápsulas da verdade já estão fazendo efeito. Por favor, não me olhem com essas
expressões tão desconcertadas. Ajude-os a entender, Menegal!
MENEGAL – Aquele remédio “homeopático” que pedi que tomassem depois do café da manhã era uma cápsula da verdade. Este produto patenteado do Laboratório Farmacêutico Cícero Dominical inibe a parte do cérebro humano que
produz as mentiras. Deste modo, tudo o que vocês disserem nos próximos minutos será aquilo que realmente pensam.
CÍCERO – O nosso objetivo com a utilização das cápsulas da verdade é acabar com a hipocrisia que oculta os desejos mais íntimos da alma humana. Embora possa ser cruel, a verdade é irmã gêmea do amor. Se quisermos despertá-lo novamente, teremos que enfrentá-la! Querem um exemplo? Minha cara Giselline, quem aqui nesta cabana é a pessoa que provoca em você o maior desejo?
GISELLINE – Leluela! (Gagueja). Leluela! (Desespera-se). Leluela!
CÍCERO – Mas, Giselline, nenhum de nós se chama Leluela. Vou tentar de novo. Quem é a pessoa nesta cabana que mais te excita?
GISELLINE – Manuela!
CATARINA – (Surpresa) Rameira! Essa galinha ainda tem coragem de falar de mim!
CÍCERO – E você, minha doce Catarina, quem dentre nós desperta a selvageria erótica que há em você?
CATARINA – O Lelo, puxa vida. Desculpe, Manu, mas ele é muito gostoso!
LELO – Sou mesmo!
CÍCERO – E quanto a você, Lelo? A quem você mais deseja aqui nesta cabana?
LELO – A mim mesmo!
CÍCERO – Excetuando você, meu passarinho vaidoso, quem é a pessoa que você mais quer beijar?
LELO – Ninguém beija melhor do que a Catarina! Isso é fato!
GISELLINE – Desgraçado! O meu mundo caiu! Sorte minha, Lelo, você ser infeliz por ter um pau tão pequeno!
LELO – (Em tom agudo) Giselline!!! Ficou maluca?
CATARINA – Que barraqueira é essa madame!
MANUELA – Pare de atacá-la, Catarina! Você não tem nada a ver com essa história.
CÍCERO – E você, minha mais nobre inimiga, quem é a pessoa que mais te atrai neste momento?
MANUELA – Estou completamente confusa, Cícero, mas não pense que pode me manipular.
MENEGAL – Por falar em manipular, Manuela, por que você não acaricia novamente as mãos de Giselline?
LELO – Giselline, o que está acontecendo? Como eles descobriram?
GISELLINE – Foi apenas um acidente... um delicioso acidente.
CÍCERO – Arnaldo e Socorro, não pensem que me esqueci de vocês. Socorro, quais são os seus objetivos aqui na Cabana dos despertAmores?
SOCORRO – Só desejo salvar o meu casamento. Mas para que isso aconteça eu preciso descobrir uma outra forma, pois se eu for depender da ajuda do Arnaldo estou perdida!
CÍCERO – Arnaldo, quais são os seus objetivos na Cabana dos despertAmores?
ARNALDO – Salvar o meu casamento e...
CÍCERO – E...
ARNALDO – Conseguir informações suficientes para escrever uma matéria, desmascarando a grande farsa montada por Cícero Dominical.
SOCORRO – Arnaldo, você me enganou!
CÍCERO – Obrigado por sua sinceridade, Arnaldo. Fico lisonjeado por você confiar tanto em mim!
(Entram GULLIVER TRÊS PERNAS e WLADIMIR TOUPEIRA).
MENEGAL – Mestre, os nossos homens chegaram!
CÍCERO – Senhoras e senhores despertAmores, como vocês devem ter lido em meus livros Seja fiel, mesmo sendo
casado ou então o best-seller Ainda não é hora de assassinar o seu parceiro, muitas vezes é difícil lidar com o dia a dia de um casamento. Muitas vezes somos tentados por atitudes autodestrutivas e acabamos ferindo aqueles a quem desejamos amar. Por que os casamentos falham? Porque privilegiamos outros interesses que não o amor! Vejamos alguns exemplos. Meu querido Gulliver, você já foi casado?
GULLIVER – Já.
CÍCERO – Por acaso, você assassinou a sua esposa?
GULLIVER – Quem contou?
CÍCERO – Não é um exemplo dos melhores. E você, Wladimir, alguma vez já foi casado?
WLADIMIR – Sim, senhor.
CÍCERO – Você assassinou a sua parceira?
WLADIMIR – Evidente que não!
CÍCERO – Vêem só? Este é o exemplo que procuro. Por que você não a matou, meu rapaz?
WLADIMIR – Porque ela morreu.
SOCORRO – Pobrezinha. Morreu de quê?
WLADIMIR – Ela ficou doente. Quando já estava nas últimas, ela ficava só balindo e balindo...
CÍCERO – Balindo? Isso significa dizer que você era casado com uma cabra!
WLADIMIR – O senhor não está muito longe da verdade, não.
CÍCERO – Retirem-se, rapazes. Se precisarmos de seus serviços, vocês serão avisados.
GULLIVER – Precisando é só chamar. Nós fazemos tudo quanto é serviço.
(Saem GULLIVER TRÊS PERNAS e WLADIMIR TOUPEIRA).
CÍCERO – Como puderam observar, meus passarinhos, a estrutura do casamento clássico apresenta falhas gritantes, pois aprisiona o casal em comportamentos restritivos, como por exemplo a falta de criatividade ou a fidelidade obrigatória. Pensem comigo, meus despertAmores, um relacionamento baseado no amor incondicional não impõe condições, não realiza cobranças. Assim, se livrarmos de fato o amor das amarras emocionais e até mesmo sociais, a criatividade a dois flui e a fidelidade se torna um desejo, uma opção muito agradável. O amor verdadeiro liberta, fazendo com que o hábito humano de nunca estar satisfeito se dilua. Que delícia é saborear a alma de nossa parceira ou de nosso parceiro! Meus despertAmores, o casamento é um terror, a não ser que seja com muito amor!
GISELLINE – Mas quanto à solidão? Eu não desejo viver neste mundo sozinha!
CATARINA – É verdade, a barraqueira tem razão. O medo da solidão me dilacera!
GISELLINE – Não vou me rebaixar mais! Vamos manter este diálogo em alto nível, por favor.
LELO – Isso mesmo, Gigi. Mantenha a elegância!
GISELLINE – Eu sou superior a essas questões de território. (Descontrolando-se momentaneamente). Ouviu bem, sua galinha, ladra de maridos...?
CATARINA – Pelo menos eu não sou covarde. Pelo menos eu tenho coragem de assumir o meu desejo.
MANUELA – (Em tom baixo, porém rígido) Catarina, segure a sua onda! Esta história já está passando dos limites.
CÍCERO – Manuela tem toda a razão, minhas libélulas. Acalmem-se, por favor.
MENEGAL – Assim não dá, meus amigos! Parecem adolescentes no cio!
LELO – Eu não tenho nada a ver com isso. É compreensível que as pessoas percam o controle se não estão bem
resolvidas com os seus desejos mais profundos.
CÍCERO – (Para si mesmo) Não é que esta besta tem razão?
LELO – O que foi?
CÍCERO – Eu disse que todos nós temos medo da solidão.
MENEGAL – Mestre, veja, a Socorro está em transe!
ARNALDO – Santo Deus, ela está tendo outra alucinação!
CÍCERO – Que ela fique em paz, pois os Espíritos Que Observam a estão protegendo!
MENEGAL – Pobre moça! O que estará se passando em sua mente?
(De modo repentino, a iluminação se torna mais sombria. ARNALDO e MANUELA se encontram destacados do restante à frente do grupo. Foco neles. Os outros personagens permanecem imóveis, à exceção de Socorro que observa o encontro).
ARNALDO – Como foi bom conhecer você, Manuela! De todas as pessoas que aqui estão, você é a única que me intriga, que causa em mim um desejo de profundidade.
MANUELA – Arnaldo, se você não fosse homem, você seria perfeito!
SOCORRO – O que está acontecendo, Arnaldo? (Silêncio).
ARNALDO – (Cheio de soberba) Somos tão inteligentes! Somos tão deliciosamente superiores a essa gente mesquinha que só consegue se preocupar com o próprio gozo!
SOCORRO – Arnaldo, estou falando com você!
MANUELA – Nós somos os verdadeiros despertAmores! Nós compreendemos a alma humana por completo! Nós somos Mestres do Universo, pois descobrimos a fórmula da paixão e nos deliciamos com ela! Nós somos o sentido da vida, pois somos o amor! Nós somos amorosamente superiores!!!
ARNALDO – Eu amo você, Manuela!
MANUELA – Você deveria ter nascido mulher, Arnaldo!
(Beijam-se com ardor).
SOCORRO – (Em desespero) Arnaldo, o que você está fazendo? Pare com isso!!!
(A iluminação volta a ser o que era. ARNALDO e MANUELA retornam aos lugares que ocupavam antes. Os outros
personagens adquirem vida).
SOCORRO – Pare com isso, Arnaldo!!! Pare com isso!
ARNALDO – (Abraçando-a carinhosamente) Estou aqui, amor. Estou aqui. Sou eu, o Arnaldo. Fique calma.
SOCORRO – (Trêmula) Arnaldo, você me ama?
ARNALDO – Claro, Socorro. Claro que eu amo você!
GISELLINE – Desequilibrada ela, não é mesmo?
CÍCERO – É melhor fazermos uma pausa, meus passarinhos. As emoções que nos habitam nem sempre se mostram gentis!
MENEGAL – Socorro, eu tenho comigo algumas cápsulas de alegria, mais um produto patenteado do Laboratório
Farmacêutico Cícero Dominical. Você pode tomá-las, se assim desejar. Garanto que você vai se sentir bem melhor!
CÍCERO – Faça o que Menegal recomenda, minha pequena mariposa! Os seus medos não a perturbarão por um bom
tempo. Quanto aos demais, reflitam! Senhoras e senhores, o amor ainda é possível, mesmo com a televisão e com a
Internet que tornam as pessoas prisioneiras de sua própria solidão. O amor ainda é possível, seja com um homem, com uma mulher ou com uma cabra. Busquem em vocês. Mergulhem em si mesmos. Agora, vamos descansar um pouco os nossos corações e as nossas mentes, despertAmores!
ARNALDO – Quanto tempo mais esses mercenários nos farão esperar?
SOCORRO – Mais respeito, Arnaldo! Eles só querem nos ajudar.
MANUELA – Só se for para enriquecê-los!
CATARINA – Vocês são mesmo muito cínicos! Por que não vão embora de uma vez se estão descontentes?
LELO – Isso mesmo! Ninguém está obrigando ninguém a permanecer na cabana!
GISELLINE – Por que você está dando apoio a esta sirigaita, Lelo?
CATARINA – Quem é sirigaita?
GISELLINE – Você é sirigaita!
CATARINA – Lelo, controla essa sua mulher, senão eu vou descer a mão nessa grã-fina barraqueira!
GISELLINE – Quem te deu esta intimidade para falar assim com o meu marido, sua franguinha? Lelo, faça alguma coisa!
LELO – (Risonho) Elas me adoram! Desculpe, meninas, eu tento não ser tão atraente, mas é muito difícil para mim.
MANUELA – Esse é mais burro do que uma porta!
ARNALDO – Vai depender do tipo de porta que você está falando.
(Manuela e Arnaldo caem na gargalhada).
SOCORRO – Quer parar de se exibir, Arnaldo? (Aliviada). Até que enfim, lá vêm eles!
(Entram CÍCERO DOMINICAL e MENEGAL).
CÍCERO – Acalmem-se, meus passarinhos, acalmem-se! Como posso ver a nossa terapia em grupo já teve início de uma forma bastante promissora. As cápsulas da verdade já estão fazendo efeito. Por favor, não me olhem com essas
expressões tão desconcertadas. Ajude-os a entender, Menegal!
MENEGAL – Aquele remédio “homeopático” que pedi que tomassem depois do café da manhã era uma cápsula da verdade. Este produto patenteado do Laboratório Farmacêutico Cícero Dominical inibe a parte do cérebro humano que
produz as mentiras. Deste modo, tudo o que vocês disserem nos próximos minutos será aquilo que realmente pensam.
CÍCERO – O nosso objetivo com a utilização das cápsulas da verdade é acabar com a hipocrisia que oculta os desejos mais íntimos da alma humana. Embora possa ser cruel, a verdade é irmã gêmea do amor. Se quisermos despertá-lo novamente, teremos que enfrentá-la! Querem um exemplo? Minha cara Giselline, quem aqui nesta cabana é a pessoa que provoca em você o maior desejo?
GISELLINE – Leluela! (Gagueja). Leluela! (Desespera-se). Leluela!
CÍCERO – Mas, Giselline, nenhum de nós se chama Leluela. Vou tentar de novo. Quem é a pessoa nesta cabana que mais te excita?
GISELLINE – Manuela!
CATARINA – (Surpresa) Rameira! Essa galinha ainda tem coragem de falar de mim!
CÍCERO – E você, minha doce Catarina, quem dentre nós desperta a selvageria erótica que há em você?
CATARINA – O Lelo, puxa vida. Desculpe, Manu, mas ele é muito gostoso!
LELO – Sou mesmo!
CÍCERO – E quanto a você, Lelo? A quem você mais deseja aqui nesta cabana?
LELO – A mim mesmo!
CÍCERO – Excetuando você, meu passarinho vaidoso, quem é a pessoa que você mais quer beijar?
LELO – Ninguém beija melhor do que a Catarina! Isso é fato!
GISELLINE – Desgraçado! O meu mundo caiu! Sorte minha, Lelo, você ser infeliz por ter um pau tão pequeno!
LELO – (Em tom agudo) Giselline!!! Ficou maluca?
CATARINA – Que barraqueira é essa madame!
MANUELA – Pare de atacá-la, Catarina! Você não tem nada a ver com essa história.
CÍCERO – E você, minha mais nobre inimiga, quem é a pessoa que mais te atrai neste momento?
MANUELA – Estou completamente confusa, Cícero, mas não pense que pode me manipular.
MENEGAL – Por falar em manipular, Manuela, por que você não acaricia novamente as mãos de Giselline?
LELO – Giselline, o que está acontecendo? Como eles descobriram?
GISELLINE – Foi apenas um acidente... um delicioso acidente.
CÍCERO – Arnaldo e Socorro, não pensem que me esqueci de vocês. Socorro, quais são os seus objetivos aqui na Cabana dos despertAmores?
SOCORRO – Só desejo salvar o meu casamento. Mas para que isso aconteça eu preciso descobrir uma outra forma, pois se eu for depender da ajuda do Arnaldo estou perdida!
CÍCERO – Arnaldo, quais são os seus objetivos na Cabana dos despertAmores?
ARNALDO – Salvar o meu casamento e...
CÍCERO – E...
ARNALDO – Conseguir informações suficientes para escrever uma matéria, desmascarando a grande farsa montada por Cícero Dominical.
SOCORRO – Arnaldo, você me enganou!
CÍCERO – Obrigado por sua sinceridade, Arnaldo. Fico lisonjeado por você confiar tanto em mim!
(Entram GULLIVER TRÊS PERNAS e WLADIMIR TOUPEIRA).
MENEGAL – Mestre, os nossos homens chegaram!
CÍCERO – Senhoras e senhores despertAmores, como vocês devem ter lido em meus livros Seja fiel, mesmo sendo
casado ou então o best-seller Ainda não é hora de assassinar o seu parceiro, muitas vezes é difícil lidar com o dia a dia de um casamento. Muitas vezes somos tentados por atitudes autodestrutivas e acabamos ferindo aqueles a quem desejamos amar. Por que os casamentos falham? Porque privilegiamos outros interesses que não o amor! Vejamos alguns exemplos. Meu querido Gulliver, você já foi casado?
GULLIVER – Já.
CÍCERO – Por acaso, você assassinou a sua esposa?
GULLIVER – Quem contou?
CÍCERO – Não é um exemplo dos melhores. E você, Wladimir, alguma vez já foi casado?
WLADIMIR – Sim, senhor.
CÍCERO – Você assassinou a sua parceira?
WLADIMIR – Evidente que não!
CÍCERO – Vêem só? Este é o exemplo que procuro. Por que você não a matou, meu rapaz?
WLADIMIR – Porque ela morreu.
SOCORRO – Pobrezinha. Morreu de quê?
WLADIMIR – Ela ficou doente. Quando já estava nas últimas, ela ficava só balindo e balindo...
CÍCERO – Balindo? Isso significa dizer que você era casado com uma cabra!
WLADIMIR – O senhor não está muito longe da verdade, não.
CÍCERO – Retirem-se, rapazes. Se precisarmos de seus serviços, vocês serão avisados.
GULLIVER – Precisando é só chamar. Nós fazemos tudo quanto é serviço.
(Saem GULLIVER TRÊS PERNAS e WLADIMIR TOUPEIRA).
CÍCERO – Como puderam observar, meus passarinhos, a estrutura do casamento clássico apresenta falhas gritantes, pois aprisiona o casal em comportamentos restritivos, como por exemplo a falta de criatividade ou a fidelidade obrigatória. Pensem comigo, meus despertAmores, um relacionamento baseado no amor incondicional não impõe condições, não realiza cobranças. Assim, se livrarmos de fato o amor das amarras emocionais e até mesmo sociais, a criatividade a dois flui e a fidelidade se torna um desejo, uma opção muito agradável. O amor verdadeiro liberta, fazendo com que o hábito humano de nunca estar satisfeito se dilua. Que delícia é saborear a alma de nossa parceira ou de nosso parceiro! Meus despertAmores, o casamento é um terror, a não ser que seja com muito amor!
GISELLINE – Mas quanto à solidão? Eu não desejo viver neste mundo sozinha!
CATARINA – É verdade, a barraqueira tem razão. O medo da solidão me dilacera!
GISELLINE – Não vou me rebaixar mais! Vamos manter este diálogo em alto nível, por favor.
LELO – Isso mesmo, Gigi. Mantenha a elegância!
GISELLINE – Eu sou superior a essas questões de território. (Descontrolando-se momentaneamente). Ouviu bem, sua galinha, ladra de maridos...?
CATARINA – Pelo menos eu não sou covarde. Pelo menos eu tenho coragem de assumir o meu desejo.
MANUELA – (Em tom baixo, porém rígido) Catarina, segure a sua onda! Esta história já está passando dos limites.
CÍCERO – Manuela tem toda a razão, minhas libélulas. Acalmem-se, por favor.
MENEGAL – Assim não dá, meus amigos! Parecem adolescentes no cio!
LELO – Eu não tenho nada a ver com isso. É compreensível que as pessoas percam o controle se não estão bem
resolvidas com os seus desejos mais profundos.
CÍCERO – (Para si mesmo) Não é que esta besta tem razão?
LELO – O que foi?
CÍCERO – Eu disse que todos nós temos medo da solidão.
MENEGAL – Mestre, veja, a Socorro está em transe!
ARNALDO – Santo Deus, ela está tendo outra alucinação!
CÍCERO – Que ela fique em paz, pois os Espíritos Que Observam a estão protegendo!
MENEGAL – Pobre moça! O que estará se passando em sua mente?
(De modo repentino, a iluminação se torna mais sombria. ARNALDO e MANUELA se encontram destacados do restante à frente do grupo. Foco neles. Os outros personagens permanecem imóveis, à exceção de Socorro que observa o encontro).
ARNALDO – Como foi bom conhecer você, Manuela! De todas as pessoas que aqui estão, você é a única que me intriga, que causa em mim um desejo de profundidade.
MANUELA – Arnaldo, se você não fosse homem, você seria perfeito!
SOCORRO – O que está acontecendo, Arnaldo? (Silêncio).
ARNALDO – (Cheio de soberba) Somos tão inteligentes! Somos tão deliciosamente superiores a essa gente mesquinha que só consegue se preocupar com o próprio gozo!
SOCORRO – Arnaldo, estou falando com você!
MANUELA – Nós somos os verdadeiros despertAmores! Nós compreendemos a alma humana por completo! Nós somos Mestres do Universo, pois descobrimos a fórmula da paixão e nos deliciamos com ela! Nós somos o sentido da vida, pois somos o amor! Nós somos amorosamente superiores!!!
ARNALDO – Eu amo você, Manuela!
MANUELA – Você deveria ter nascido mulher, Arnaldo!
(Beijam-se com ardor).
SOCORRO – (Em desespero) Arnaldo, o que você está fazendo? Pare com isso!!!
(A iluminação volta a ser o que era. ARNALDO e MANUELA retornam aos lugares que ocupavam antes. Os outros
personagens adquirem vida).
SOCORRO – Pare com isso, Arnaldo!!! Pare com isso!
ARNALDO – (Abraçando-a carinhosamente) Estou aqui, amor. Estou aqui. Sou eu, o Arnaldo. Fique calma.
SOCORRO – (Trêmula) Arnaldo, você me ama?
ARNALDO – Claro, Socorro. Claro que eu amo você!
GISELLINE – Desequilibrada ela, não é mesmo?
CÍCERO – É melhor fazermos uma pausa, meus passarinhos. As emoções que nos habitam nem sempre se mostram gentis!
MENEGAL – Socorro, eu tenho comigo algumas cápsulas de alegria, mais um produto patenteado do Laboratório
Farmacêutico Cícero Dominical. Você pode tomá-las, se assim desejar. Garanto que você vai se sentir bem melhor!
CÍCERO – Faça o que Menegal recomenda, minha pequena mariposa! Os seus medos não a perturbarão por um bom
tempo. Quanto aos demais, reflitam! Senhoras e senhores, o amor ainda é possível, mesmo com a televisão e com a
Internet que tornam as pessoas prisioneiras de sua própria solidão. O amor ainda é possível, seja com um homem, com uma mulher ou com uma cabra. Busquem em vocês. Mergulhem em si mesmos. Agora, vamos descansar um pouco os nossos corações e as nossas mentes, despertAmores!
Cena da peça Coleção de centauros
De Rafa Lima
(Uma praça pública. Corneta. Tambores. Entram dois GUARDAS).
PRIMEIRO GUARDA - (Falando com a platéia) Povo da população, gente humilde que paga miseravelmente os seus impostos, pessoas modestas que estão restritas à marginalidade e, por fim, seres simples que ignoram o poder, preparai vossas aclamações, pois o governador está próximo.
SEGUNDO GUARDA - Vossa Incompetência, o governador, exige a vossa atenção. Preparem-se, o governador está chegando, montado em sua sabedoria infinita.
(Entra o GOVERNADOR, seguido pelo BRUXO e pelo MÉDICO).
GOVERNADOR - (Para a platéia) Cidadãos da cidade, eu sou o governador. É verdade que vocês já tem conhecimento disto, mas eu sou o governador. A obediência de todos é exigida por lei, o que também é uma verdade, porém eu sou o governador. Digo isto apenas para lembrar que eu sou o governador. Quer dizer, como diz a palavra, eu governo a dor. Todas as dores deste estado me pertencem. No entanto, em todas as nações do mundo, há ratos. Estes pequenos felinos estão infiltrados em nossas casas, no meio do nosso povo, para destruir a unidade familiar e hierárquica que, por ordem divina, nos rege. Como diria Charlie Chaplin, o patrono dos Vikings: “Há algo de podre no reino da...”. Qual era mesmo o reino?
PRIMEIRO GUARDA - Sibéria.
SEGUNDO GUARDA - Nada disso, era Indonésia.
PRIMEIRO GUARDA - Que cortem minha cabeça fora, se não era Sibéria.
BRUXO - Silêncio, idiotas. Meu senhor, Charlie Chaplin ainda não nasceu.
GOVERNADOR - Ah, não? Ah, sim. Lembrei: “Há algo de podre no reino de Madagascar”, ele dizia. Estou tentando dizer, o que as suas mentes limitadas provavelmente ainda não entenderam, que existe um traidor entre nós. Todos devem estar estranhando a minha presença nesta praça fétida e mal conservada pelos nossos governantes, mas existe uma boa razão. Para o bem-estar dos concidadãos, conclamo a presença do cidadão número... Qual é o número?
BRUXO - Mil trezentos e catorze, senhor.
GOVERNADOR - Conclamo a presença do cidadão 1314. Agora! A desobediência à autoridade está sujeita à pena de morte.
(Entra o CIDADÃO 1314, vindo da platéia)
CIDADÃO 1314 - Aqui estou, Vossa Incompetência.
GOVERNADOR - Ouviu, meu bom bruxo? Até o povo já aprendeu o tratamento correto para se usar com o governador.
BRUXO - O povo apenas repete. O povo não pensa, ou melhor, o povo não deve pensar, só deve repetir.
GOVERNADOR - Sábias palavras. (Para o Cidadão 1314) É exatamente por isso que o chamei aqui. Como pude ver, você é um excelente repetidor. No entanto, existem rumores de que você, mesmo com a sua aparência hedionda, que mais parece um espantalho, estaria difundindo pensamentos entre a população. Diga-me, você pensa?
CIDADÃO 1314 - Senhor, a única coisa que fiz foi tentar criar melhores condições para nossas famílias pobres. Meus pensamentos buscavam evitar que o povo morresse de fome.
GOVERNADOR - Mentira! Seu sacripantas, seus pensamentos queriam desafiar o governador. Se é verdade que o povo morre de fome, o que não é verdade, então como você conseguia elaborar as suas idéias? Quem tem fome, não tem forças para pensar. Por isso, os passarinhos são tão inteligentes. Alguém aqui já viu um passarinho morrer de fome? Nunca, em tempo algum. Preste atenção, criatura das profundezas, pensar é para os pássaros.
CIDADÃO 1314 - Como governador, o senhor é um bom patife.
GOVERNADOR - Todos estão ouvindo. O governador foi insultado na sua própria presença. Eu deveria liberar sobre este miserável ser toda a minha cólera, mas não vou fazer isto. Por esta razão, está em minha companhia um médico inigualável, um curandeiro poderoso. Doutor, eis o seu paciente.
MÉDICO - Pobre indivíduo. A vida não lhe foi grata, não é mesmo? Sua esposa deve ter chorado uma tempestade de lágrimas, todos esses anos. O inevitável aconteceu. Responda-me, você é louco?
CIDADÃO 1314 - Não, senhor.
MÉDICO - Você está louco?
CIDADÃO 1314- Ainda não, senhor.
MÉDICO - Você pode me provar que não está louco?
CIDADÃO 1314 - Como assim?
MÉDICO - Já que não está louco, prove.
CIDADÃO 1314- Provar? Eu tenho dois olhos, um nariz, uma boca. Sinto frio, quando está frio e sinto calor, quando está quente. Durante a noite, eu durmo e, quando o sol se levanta, eu acordo. Amo a minha família e faço os meus sacrifícios aos deuses...
MÉDICO - É o bastante.
GOVERNADOR - Qual é o seu diagnóstico, doutor?
MÉDICO - Está louco.
CIDADÃO 1314 - O quê?
MÉDICO - Apenas um louco tentaria provar a sua sanidade. (Sussurrando para o governador) Este método é infalível. Os loucos não têm escapatória.
GOVERNADOR - Guardas, prendam o louco. (Os guardas imobilizam e amordaçam o cidadão 1314) Levem-no daqui. Não, esperem, eu vou junto. Uma última palavrinha com o povo. (Para platéia) Como podem ver, o governador agiu rápido novamente na caçada aos ratos. Podem ficar tranqüilos e voltar a viver as suas intermináveis vidas. Por fim, não se metam com os gauleses. (Sai, seguido pelo BRUXO e pelo MÉDICO).
PRIMEIRO GUARDA - Amem as leis e obedeçam o governador.
SEGUNDO GUARDA - É o contrário. Amem o governador e obedeçam as leis. (Saem discutindo, levando o CIDADÃO 1314. Entram uma MOÇA e um RAPAZ, vindos da platéia).
MOÇA - Veja, estão levando o rapaz preso.
RAPAZ - Pelos deuses, foram ordens do governador.
MOÇA - Mas o que fez ele de mal? Só estava organizando um grupo para recolher mantimentos.
RAPAZ - Você não viu? O pobre diabo está louco. Por melhor que fosse a sua intenção, ele não podia permanecer em liberdade. Nossas vidas estariam em risco. Ainda por cima, eu o ouvi diversas vezes falando para o povo contra o governador.
MOÇA - Eu também ouvi, mas eles irão matá-lo.
RAPAZ - De maneira nenhuma. Se fosse para matá-lo, trariam um carrasco e não um médico.
MOÇA - Será que você não percebe?
RAPAZ - Perceber? Não há nada para se perceber. O governador agiu antes que uma desgraça caísse sobre nós.
MOÇA - O que poderia acontecer?
RAPAZ - Não sei ao certo... Você está desconfiando do governador?
MOÇA - Não é nada disso. Só estou tentando dizer que eles não deixam e não querem que nós sejamos quem realmente somos. No dia em que nós nascemos, eles determinaram o caminho de nossas vidas, criando situações que não possam mudá-lo. Se alguém nasce no castelo, sobre uma cama enorme, no meio de lençóis de cetim, fica determinado que esta pessoa vai viver coberta de ouro, comendo três leitões por dia e bebendo vinho da melhor qualidade. No entanto, se alguém nasce no meio do povo, seguindo o raciocínio dos poderosos que nunca farão nada em seu benefício, a não ser esperar a sua morte, fica condenado à fome e à miséria. Agora entendo tudo.
RAPAZ - Do que você está falando?
MOÇA - Que nós devemos buscar o nosso próprio caminho. Nós não precisamos que outras pessoas digam quem nós somos e como devemos agir.
RAPAZ - Pare com isso! Você está me assustando.
MOÇA - Não precisa ter medo. Nada pode acontecer de mal, pois eu tenho a verdade dentro de mim.
RAPAZ - Nossa, eu nunca te vi falar deste jeito.
MOÇA - Não é maravilhoso?
RAPAZ - O que você está pensando em fazer?
MOÇA - Nós vamos reunir o povo, aqui mesmo na praça, e contar esta minha descoberta.
RAPAZ - E quanto ao governador?
MOÇA - Ele vai se sentir aliviado de não ter que se responsabilizar mais pelo povo. Na verdade, o povo nunca foi uma de suas maiores preocupações. Provavelmente, ele vai ficar indiferente a tudo que estiver acontecendo por aqui.
RAPAZ - No caso do cidadão 1314, ele não ficou indiferente.
MOÇA - Este era um caso de loucura. O governador tinha que tomar uma atitude. Só Deus sabe o que um louco solto pelas ruas é capaz de fazer. Lá no castelo, ele estará em segurança. Todos os loucos estão lá mesmo.
RAPAZ - Você, falando desta maneira, faz com que eu acredite que o mundo não é um lugar de sofrimentos e que a morte não é nossa melhor companheira... Nós vamos nos encontrar perto do lago esta noite?
MOÇA - Talvez. Mas eu prometo que você ainda vai ser rico. Neste caso, nós não teremos que nos esconder para os nossos encontros. Tenho que ir. Você vai me ajudar?
RAPAZ - Farei tudo o que você quiser, dentro do limite da razão.
MOÇA - Então, adeus. Se você sentir a minha falta, pode ir ao lago esta noite. (Sai. O RAPAZ sorri e sai pelo lado oposto).
CENA 4
(Uma praça pública. Corneta. Tambores. Entram dois GUARDAS).
PRIMEIRO GUARDA - (Falando com a platéia) Povo da população, gente humilde que paga miseravelmente os seus impostos, pessoas modestas que estão restritas à marginalidade e, por fim, seres simples que ignoram o poder, preparai vossas aclamações, pois o governador está próximo.
SEGUNDO GUARDA - Vossa Incompetência, o governador, exige a vossa atenção. Preparem-se, o governador está chegando, montado em sua sabedoria infinita.
(Entra o GOVERNADOR, seguido pelo BRUXO e pelo MÉDICO).
GOVERNADOR - (Para a platéia) Cidadãos da cidade, eu sou o governador. É verdade que vocês já tem conhecimento disto, mas eu sou o governador. A obediência de todos é exigida por lei, o que também é uma verdade, porém eu sou o governador. Digo isto apenas para lembrar que eu sou o governador. Quer dizer, como diz a palavra, eu governo a dor. Todas as dores deste estado me pertencem. No entanto, em todas as nações do mundo, há ratos. Estes pequenos felinos estão infiltrados em nossas casas, no meio do nosso povo, para destruir a unidade familiar e hierárquica que, por ordem divina, nos rege. Como diria Charlie Chaplin, o patrono dos Vikings: “Há algo de podre no reino da...”. Qual era mesmo o reino?
PRIMEIRO GUARDA - Sibéria.
SEGUNDO GUARDA - Nada disso, era Indonésia.
PRIMEIRO GUARDA - Que cortem minha cabeça fora, se não era Sibéria.
BRUXO - Silêncio, idiotas. Meu senhor, Charlie Chaplin ainda não nasceu.
GOVERNADOR - Ah, não? Ah, sim. Lembrei: “Há algo de podre no reino de Madagascar”, ele dizia. Estou tentando dizer, o que as suas mentes limitadas provavelmente ainda não entenderam, que existe um traidor entre nós. Todos devem estar estranhando a minha presença nesta praça fétida e mal conservada pelos nossos governantes, mas existe uma boa razão. Para o bem-estar dos concidadãos, conclamo a presença do cidadão número... Qual é o número?
BRUXO - Mil trezentos e catorze, senhor.
GOVERNADOR - Conclamo a presença do cidadão 1314. Agora! A desobediência à autoridade está sujeita à pena de morte.
(Entra o CIDADÃO 1314, vindo da platéia)
CIDADÃO 1314 - Aqui estou, Vossa Incompetência.
GOVERNADOR - Ouviu, meu bom bruxo? Até o povo já aprendeu o tratamento correto para se usar com o governador.
BRUXO - O povo apenas repete. O povo não pensa, ou melhor, o povo não deve pensar, só deve repetir.
GOVERNADOR - Sábias palavras. (Para o Cidadão 1314) É exatamente por isso que o chamei aqui. Como pude ver, você é um excelente repetidor. No entanto, existem rumores de que você, mesmo com a sua aparência hedionda, que mais parece um espantalho, estaria difundindo pensamentos entre a população. Diga-me, você pensa?
CIDADÃO 1314 - Senhor, a única coisa que fiz foi tentar criar melhores condições para nossas famílias pobres. Meus pensamentos buscavam evitar que o povo morresse de fome.
GOVERNADOR - Mentira! Seu sacripantas, seus pensamentos queriam desafiar o governador. Se é verdade que o povo morre de fome, o que não é verdade, então como você conseguia elaborar as suas idéias? Quem tem fome, não tem forças para pensar. Por isso, os passarinhos são tão inteligentes. Alguém aqui já viu um passarinho morrer de fome? Nunca, em tempo algum. Preste atenção, criatura das profundezas, pensar é para os pássaros.
CIDADÃO 1314 - Como governador, o senhor é um bom patife.
GOVERNADOR - Todos estão ouvindo. O governador foi insultado na sua própria presença. Eu deveria liberar sobre este miserável ser toda a minha cólera, mas não vou fazer isto. Por esta razão, está em minha companhia um médico inigualável, um curandeiro poderoso. Doutor, eis o seu paciente.
MÉDICO - Pobre indivíduo. A vida não lhe foi grata, não é mesmo? Sua esposa deve ter chorado uma tempestade de lágrimas, todos esses anos. O inevitável aconteceu. Responda-me, você é louco?
CIDADÃO 1314 - Não, senhor.
MÉDICO - Você está louco?
CIDADÃO 1314- Ainda não, senhor.
MÉDICO - Você pode me provar que não está louco?
CIDADÃO 1314 - Como assim?
MÉDICO - Já que não está louco, prove.
CIDADÃO 1314- Provar? Eu tenho dois olhos, um nariz, uma boca. Sinto frio, quando está frio e sinto calor, quando está quente. Durante a noite, eu durmo e, quando o sol se levanta, eu acordo. Amo a minha família e faço os meus sacrifícios aos deuses...
MÉDICO - É o bastante.
GOVERNADOR - Qual é o seu diagnóstico, doutor?
MÉDICO - Está louco.
CIDADÃO 1314 - O quê?
MÉDICO - Apenas um louco tentaria provar a sua sanidade. (Sussurrando para o governador) Este método é infalível. Os loucos não têm escapatória.
GOVERNADOR - Guardas, prendam o louco. (Os guardas imobilizam e amordaçam o cidadão 1314) Levem-no daqui. Não, esperem, eu vou junto. Uma última palavrinha com o povo. (Para platéia) Como podem ver, o governador agiu rápido novamente na caçada aos ratos. Podem ficar tranqüilos e voltar a viver as suas intermináveis vidas. Por fim, não se metam com os gauleses. (Sai, seguido pelo BRUXO e pelo MÉDICO).
PRIMEIRO GUARDA - Amem as leis e obedeçam o governador.
SEGUNDO GUARDA - É o contrário. Amem o governador e obedeçam as leis. (Saem discutindo, levando o CIDADÃO 1314. Entram uma MOÇA e um RAPAZ, vindos da platéia).
MOÇA - Veja, estão levando o rapaz preso.
RAPAZ - Pelos deuses, foram ordens do governador.
MOÇA - Mas o que fez ele de mal? Só estava organizando um grupo para recolher mantimentos.
RAPAZ - Você não viu? O pobre diabo está louco. Por melhor que fosse a sua intenção, ele não podia permanecer em liberdade. Nossas vidas estariam em risco. Ainda por cima, eu o ouvi diversas vezes falando para o povo contra o governador.
MOÇA - Eu também ouvi, mas eles irão matá-lo.
RAPAZ - De maneira nenhuma. Se fosse para matá-lo, trariam um carrasco e não um médico.
MOÇA - Será que você não percebe?
RAPAZ - Perceber? Não há nada para se perceber. O governador agiu antes que uma desgraça caísse sobre nós.
MOÇA - O que poderia acontecer?
RAPAZ - Não sei ao certo... Você está desconfiando do governador?
MOÇA - Não é nada disso. Só estou tentando dizer que eles não deixam e não querem que nós sejamos quem realmente somos. No dia em que nós nascemos, eles determinaram o caminho de nossas vidas, criando situações que não possam mudá-lo. Se alguém nasce no castelo, sobre uma cama enorme, no meio de lençóis de cetim, fica determinado que esta pessoa vai viver coberta de ouro, comendo três leitões por dia e bebendo vinho da melhor qualidade. No entanto, se alguém nasce no meio do povo, seguindo o raciocínio dos poderosos que nunca farão nada em seu benefício, a não ser esperar a sua morte, fica condenado à fome e à miséria. Agora entendo tudo.
RAPAZ - Do que você está falando?
MOÇA - Que nós devemos buscar o nosso próprio caminho. Nós não precisamos que outras pessoas digam quem nós somos e como devemos agir.
RAPAZ - Pare com isso! Você está me assustando.
MOÇA - Não precisa ter medo. Nada pode acontecer de mal, pois eu tenho a verdade dentro de mim.
RAPAZ - Nossa, eu nunca te vi falar deste jeito.
MOÇA - Não é maravilhoso?
RAPAZ - O que você está pensando em fazer?
MOÇA - Nós vamos reunir o povo, aqui mesmo na praça, e contar esta minha descoberta.
RAPAZ - E quanto ao governador?
MOÇA - Ele vai se sentir aliviado de não ter que se responsabilizar mais pelo povo. Na verdade, o povo nunca foi uma de suas maiores preocupações. Provavelmente, ele vai ficar indiferente a tudo que estiver acontecendo por aqui.
RAPAZ - No caso do cidadão 1314, ele não ficou indiferente.
MOÇA - Este era um caso de loucura. O governador tinha que tomar uma atitude. Só Deus sabe o que um louco solto pelas ruas é capaz de fazer. Lá no castelo, ele estará em segurança. Todos os loucos estão lá mesmo.
RAPAZ - Você, falando desta maneira, faz com que eu acredite que o mundo não é um lugar de sofrimentos e que a morte não é nossa melhor companheira... Nós vamos nos encontrar perto do lago esta noite?
MOÇA - Talvez. Mas eu prometo que você ainda vai ser rico. Neste caso, nós não teremos que nos esconder para os nossos encontros. Tenho que ir. Você vai me ajudar?
RAPAZ - Farei tudo o que você quiser, dentro do limite da razão.
MOÇA - Então, adeus. Se você sentir a minha falta, pode ir ao lago esta noite. (Sai. O RAPAZ sorri e sai pelo lado oposto).
Trecho do romance: Bem-vindos, sonhadores (tão ensimesmados de inteligência e de amor)
De Rafa Lima
4- Epidemia amorosa
A cidade amanhece diferente. As pessoas podem sentir no ar uma misteriosa partícula de excitação que ao mesmo tempo causa confusão e assombro. (O que está tramando, contador de histórias? Não vai me deixar saber?). Simultaneamente em diversas regiões acontecem alterações no comportamento de indivíduos comuns. Há registros de um grande número de internações médicas em que os pacientes apresentam sintomas de febre elevada, aceleração anormal do ritmo cardíaco ou hipersensibilidade dos sentidos. (O que está acontecendo?). Em algumas áreas, unidades policiais são requisitadas por moradores preocupados com situações em que indivíduos de ambos os sexos e de diferentes classes sociais protagonizam cenas extravagantes de amor e, em alguns casos mais drásticos, de amor e morte. (A que estamos expostos, droga?).
As autoridades governamentais estão alarmadas com a velocidade crescente com que a invisível moléstia ataca a população e tentam junto à comunidade médica encontrar mecanismos para deter o avanço da doença que surgiu nas primeiras horas da madrugada. Os jornalistas já batizaram a metamorfose emocional que acomete de maneira tão inesperada diversos cidadãos de epidemia amorosa, (que nome ridículo!) porque algumas pessoas sob o efeito da moléstia estão sofrendo de crises agudas de romantismo, ansiando por carinhos e carícias que segundo elas aliviam o desconforto causado pela brutal febre. “Por favor, me abrace”, imploram. “Me beije agora. A febre está me matando!”, afirmam com gestos de desespero em meio a calafrios. (Isso não está acontecendo! Isso não está acontecendo!). Como ainda não se conhece a forma de transmissão da suposta doença, os indivíduos que apresentam sinais de alteração no comportamento indicando a possibilidade de contaminação acabam sendo repelidos por seus acompanhantes, a não ser por aqueles que também são acometidos pelos mesmos sintomas. A rejeição tem um efeito catastrófico sobre os doentes, fazendo com que alguns irrompam em manifestações súbitas de choro e levando outros, principalmente as mulheres, ao desmaio. (Você está delirando, narrador!). Em contrapartida, há poetas espalhados pelas esquinas da cidade. As floriculturas nunca tiveram um faturamento tão elevado, pois é comum nas ruas a visão de amantes segurando flores. Em todos os lugares, há cenas patéticas, poéticas ou cômicas de pessoas a declarar o seu amor. De fato, a epidemia amorosa transforma o cotidiano frio e indiferente da maioria dos cidadãos com uma potente avalanche de emoções. Se você não acredita em minhas palavras, venha comigo. Você não tem medo de se contagiar pela epidemia amorosa, tem? Você tem receio de se apaixonar? Vamos às ruas vivenciar momentos de loucura sentimental de uma população. (Aonde você está nos levando? Não se atreva a sair daqui!).
Um cenário que poderia ter sido criado por uma entidade divina com bastante senso de humor surge diante de nossos olhos. O caos também se revela com poesia. (Que se exploda a poesia! Leve-me de volta, agora!). As pessoas parecem ter saído de suas casas ao mesmo tempo, pois as ruas estão superlotadas. Algumas cantam, outras dançam e há ainda aquelas que se amam sob a luz matinal do sol. O tráfego está parado, pois os carros em sua maioria foram abandonados. Um guarda de trânsito está ajoelhado em lágrimas diante de uma senhora de setenta e cinco anos que ostenta uma rosa vermelha sobre a orelha direita. Ele repete insistentemente frases como: “Todos os dias eu vejo você, minha flor” ou “como eu a amo, velhinha”. Ela sorri e finge ignorá-lo. A cena se repete dezenas de vezes. Enquanto isso, um homem negro de porte atlético e uma mulher de longos cabelos loiros estão abraçados com força. Gritam em uníssono: “Nós somos um só!”. No sétimo andar de um prédio, uma mulher solitária berra em agonia: “Alguém me dê amor!”. Um homem na rua ouve o chamado e tenta em vão escalar as paredes do edifício. Cinco moças seminuas à semelhança de ninfas mitológicas cantam uma música angelical enquanto lançam pétalas de flores sobre um casal adolescente que se beija com inocência. Veja, que surpresa! À nossa esquerda está Dona Dorotéia, a megera desagradável da festa de ano-novo. (A delicada mocréia) está usufruindo dos sensuais beijos e carinhos de um rapaz de vinte anos. A cada instante, novas imagens curiosas se sucedem em um ritmo louco. Quanto mais andamos, maior é a certeza de que a epidemia amorosa dominou a cidade.
As autoridades governamentais estão alarmadas com a velocidade crescente com que a invisível moléstia ataca a população e tentam junto à comunidade médica encontrar mecanismos para deter o avanço da doença que surgiu nas primeiras horas da madrugada. Os jornalistas já batizaram a metamorfose emocional que acomete de maneira tão inesperada diversos cidadãos de epidemia amorosa, (que nome ridículo!) porque algumas pessoas sob o efeito da moléstia estão sofrendo de crises agudas de romantismo, ansiando por carinhos e carícias que segundo elas aliviam o desconforto causado pela brutal febre. “Por favor, me abrace”, imploram. “Me beije agora. A febre está me matando!”, afirmam com gestos de desespero em meio a calafrios. (Isso não está acontecendo! Isso não está acontecendo!). Como ainda não se conhece a forma de transmissão da suposta doença, os indivíduos que apresentam sinais de alteração no comportamento indicando a possibilidade de contaminação acabam sendo repelidos por seus acompanhantes, a não ser por aqueles que também são acometidos pelos mesmos sintomas. A rejeição tem um efeito catastrófico sobre os doentes, fazendo com que alguns irrompam em manifestações súbitas de choro e levando outros, principalmente as mulheres, ao desmaio. (Você está delirando, narrador!). Em contrapartida, há poetas espalhados pelas esquinas da cidade. As floriculturas nunca tiveram um faturamento tão elevado, pois é comum nas ruas a visão de amantes segurando flores. Em todos os lugares, há cenas patéticas, poéticas ou cômicas de pessoas a declarar o seu amor. De fato, a epidemia amorosa transforma o cotidiano frio e indiferente da maioria dos cidadãos com uma potente avalanche de emoções. Se você não acredita em minhas palavras, venha comigo. Você não tem medo de se contagiar pela epidemia amorosa, tem? Você tem receio de se apaixonar? Vamos às ruas vivenciar momentos de loucura sentimental de uma população. (Aonde você está nos levando? Não se atreva a sair daqui!).
Um cenário que poderia ter sido criado por uma entidade divina com bastante senso de humor surge diante de nossos olhos. O caos também se revela com poesia. (Que se exploda a poesia! Leve-me de volta, agora!). As pessoas parecem ter saído de suas casas ao mesmo tempo, pois as ruas estão superlotadas. Algumas cantam, outras dançam e há ainda aquelas que se amam sob a luz matinal do sol. O tráfego está parado, pois os carros em sua maioria foram abandonados. Um guarda de trânsito está ajoelhado em lágrimas diante de uma senhora de setenta e cinco anos que ostenta uma rosa vermelha sobre a orelha direita. Ele repete insistentemente frases como: “Todos os dias eu vejo você, minha flor” ou “como eu a amo, velhinha”. Ela sorri e finge ignorá-lo. A cena se repete dezenas de vezes. Enquanto isso, um homem negro de porte atlético e uma mulher de longos cabelos loiros estão abraçados com força. Gritam em uníssono: “Nós somos um só!”. No sétimo andar de um prédio, uma mulher solitária berra em agonia: “Alguém me dê amor!”. Um homem na rua ouve o chamado e tenta em vão escalar as paredes do edifício. Cinco moças seminuas à semelhança de ninfas mitológicas cantam uma música angelical enquanto lançam pétalas de flores sobre um casal adolescente que se beija com inocência. Veja, que surpresa! À nossa esquerda está Dona Dorotéia, a megera desagradável da festa de ano-novo. (A delicada mocréia) está usufruindo dos sensuais beijos e carinhos de um rapaz de vinte anos. A cada instante, novas imagens curiosas se sucedem em um ritmo louco. Quanto mais andamos, maior é a certeza de que a epidemia amorosa dominou a cidade.
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