Parte 2 de 6 do conto (em repeteco a pedidos) Deus desnudo

De Rafa Lima


O truque humano

Deus, afastado da própria criação. “Fundei o Universo. Todas essas empresas, conceitos e idéias, como o Sol, as auroras boreais e a Audrey Hepburn, levam a minha marca”. Não houve jeito, é a lógica de mercado, para o bem das finanças da instituição o primeiro mentor da Companhia Existencial foi desligado do cargo, sendo substituído por um conselho de acionistas mitólogos, “que para comer alguém precisam de dinheiro ou de status, não conhecem outros métodos”, Deus, furioso, prepara o troco, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, o sarcasmo se tornou a ferramenta que o antigo soberano utiliza para se desvencilhar por instantes ligeiros da servidão a que o homem O submeteu, aposentadoria precoce que O acorrentou à doença de expansão humana. Se Deus, outrora amorfo e intangível, em estado bruto antes de assumir traços satisfatórios à humanidade, não se encontra alegre com o papel que desempenha nos dias de hoje, o Criador reage com as coincidências sarcásticas ou irônicas do destino. A ironia e o sarcasmo do cotidiano adquiriram para o antigo proprietário do planeta Terra o mesmo poder balsâmico que Ele Próprio costuma ter para a pessoa de fé. Após ser aproximado desproporcionalmente da criatura que O seqüestrou de Si Mesmo, Deus desenvolveu um tipo sacana de graça, divertida fragmentação da vida total, ácida elaboração dos movimentos do ser, de que adianta um homem ter um pau se não aprende a ser feliz pois está mais preocupado com a ameaça do outro?, “defesa!, defesa!, defesa!”, uma mulher ter tantos sonhos se não abre mão dos seus medos viciados que a levam pelo caminho dos modelos prontos de comportamento, fórmulas cristalizadas de sucesso?, “defesa!, defesa!, defesa!”, um escritor ter talento e visão-além-do-alcance da matéria existencial mesmo com toda aquela vaidade babaca, “que astro!”, se os leitores que o admirarão só nascerão muito tempo depois que o literato já estiver morto?, hipertédio, síndrome do pânico e diferentes tipos de câncer para os orgulhosos, fome, chicotadas na alma e outras experiências cancerígenas para os humildes, e, paraquemquiser!, doenças do sangue, do sexo ou da mente, “avante, supermacacos!”, Deus, colérico com o ser porque o homem não liberta Deus, como o filho não se atreve a lidar com a idéia da morte do pai (às vezes por desejá-la) e, portanto, encarar a própria morte. Deus quer liberdade, essa putinha inteligente! Enquanto se aproveitam Dele, Ele se vinga e manda os seus leais anjos, os poucos que não foram cooptados pela genial e mandona ambição de consumo compulsivo pré-suicida, “a idéia de futuro é um tremendo foda-se em termos globais, porque existem assuntos mais importantes que se referem aos egos e aos cus de cada um”, Deus, incrédulo, mas fale dos anjos, não perca o foco narrativo, esse puto!, não desvie a atenção de quem ama você através dos textos, enquanto se aproveitam Dele, Ele se vinga e manda os seus leis anjos sussurrar aos ouvidos de papais e mamães próximos a bebês e crianças, “quando crescer esse pequenino vai ser economista” ou “nasceu para ser advogada”, sim, sim, sim, sim!, “o mundo precisa de muitos e muitos e muitos economistas e advogados”, quase sempre funciona. Deitado no leito celestial, hotel seis estrelas, Deus peida, o Monte Vesúvio não dá sinais de reação como no passado.

Continua na parte 3

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Próxima atualização no domingo à noite.

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4 comentários:

Ingrid disse...

"Avante, supermacacos!". Acidez no estilo do Coringa, hein? Estou gostando muito, quero mais!

Ingrid disse...

muito bom mesmo, muito bom mesmo, Deus fica cada vez mais provocador e sai do padrão de uma maneira muito muito criativa e crítica à dependência humana. Gostei de verdade.

Ingrid disse...

Ah, esqueci de dizer, esse Pessoinhas está cada vez melhor, seu sacana!

Uma moça bonita disse...

Impressionante!