O vigia
Deus pensa no passado. Ele costumava agir de modo tão cruel quanto a idéia de viver nos tempos atuais em um mundo sem televisão. “Mitologia, seja grega, cristã, árabe, indígena, nipônica, zulu, esquimó, asteca, etc, tem pouco a ver com fé e muito com imaginação”, deus, desconstrutor, enquanto se recorda da noite em que viu um sem teto quase morrer de frio sob uma marquise assistindo a um jogo de beisebol em uma TV portátil. Mesmo a congelar, o pobre sujeito não largava o aparelho, “isso é fé?”, Deus também ignorância. O sem teto oscilava entre pedir a ajuda de Deus para o seu time, praguejar contra os lances do jogo e beber para esquentar. “Qual é a maior invenção de todos os tempos, a televisão ou o amor?”, Deus, confuso. Encontra o controle remoto, peladão, com a pica grossa à mostra, embora sem a menor disposição, coça-se e liga o aparelho. A televisão de Deus tem a pretensão de oferecer uma programação onisciente, sabe como é, para homenagear os velhos tempos de sabe-tudo. Não é o mesmo! Mesmo assim, Ele a tem evitado, estava se viciando em informação. Canal de esportes intelectuais, “porrada homossexual enrustida!”, o locutor da luta: “Hoje, pela Federação Internacional de Boxe Universal, Fibu, a Cultura de massa surrou e venceu as Belas-artes por nocaute técnico no nono assalto e já confirmou a realização do desafio contra a ex-campeã Filosofia”. Ele muda o canal, telejornal do Inferno, voz que transmite o ultraje da apresentadora: “Casal anglopalestino é impedido de retornar aos Estados Unidos”. Muda. “Compre agora as suas camisetas com os personagens de Pessoinhas e do Mendigo Pop”. Muda. Câmeras de segurança do Novo Iraque, nada acontece, só o silêncio da espera. Muda. “Por que será que as pessoas mais inteligentes, que levam uma existência mais divertida, votam sempre na esquerda e aqueles que ganham mais dinheiro e têm uma vida mais segura votam na direita?”, Deus se engasga com um quitute ao ouvir a pergunta, “que papo mais maniqueísta rola nesse mundo!”, gosta da fala coloquial, diverte-se com a gíria. Muda. Canal erótico, “hum, mais tarde”. Muda. Denúncia de venda ilegal de armas para a guerrilha na Colômbia “e em outros 74 países, não me sacaneia que ninguém sabia?”, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, “a hipocrisia vendida em frascos de perfume, a guerra como parque temático”, Deus bang-bang. “Na minha mão, seria mais barato matar uns aos outros. Terceiro milênio de cu é rola, continuam uns bárbaros!”. Muda. Muda. Muda. 747 canais de essência superficial. O galã em entrevista íntima: “Eu jamais viveria em um mundo sem as mulheres. Elas são o que há de melhor na vida”. Deus ri, pois sabe o que o célebre rapaz sente, “deixa de conversa mole, menino, conheço você, não faz tipo!, se as mulheres não tivessem bocetas você não dava nem ‘bom dia!’ para elas”, Deus, nada culpado por dizer a palavra boceta, ri da própria piada e por fim se sente sozinho. “No mundo dos homens, ser Deus é ser só”. Controle remoto, me muda. Muda. Muda. Muda a fala, em silêncio, mudada. Muda a mente, sem ação, temente. Muda, deus, mudo. Rápido interesse, “ah, não!”, fica puto, não interessa, “o objetivo supremo da sociedade de consumo se aproxima, em breve, somente os magros e raquíticos andarão nas ruas-passarelas. Oficialmente, não existirão mais gordos”. Muda de canal, mas nem vê, larga o controle, afasta-se da cama, deixa o aparelho em funcionamento sem público.
O menino cientista
Deus abandona a taxidermia de Si Mesmo e surge na varanda da casa de praia próxima a Fortaleza, Brasil. Prefere as madrugadas de calor, nas noites frias, a humanidade se protege mais, come mais chocolate, fica mais deprimida, as putas trabalham menos (porque também humanas). O interesse de Deus pelas mulheres é científico. Sim, sim, “até aonde vai a insatisfação com o papel exercido no mundo em contradição ao desejo do deslumbramento eufórico?”, Deus primitivo, quase machão, ainda não descobriu o prazer de desvendar as minúcias e os atalhos do complexo labirinto feminino. Atualmente, apaixonado pelo solo cearense, vai até as mulheres em andanças noturnas, quer crer que voltou a gostar de brincar de humano. Cansado da insipidez da morada celeste, a cada dia, cidade, lar e corpo novos! Nesses momentos, não sente falta da televisão. “No mundo de Deus, ser homem não é ser só”.
Continua na parte 4
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3 comentários:
Adorei a taxidermia de si mesmo!
Cade os filmes? :)
"Deus se engasga com um quitute ao ouvir a pergunta, “que papo mais maniqueísta rola nesse mundo!”, gosta da fala coloquial, diverte-se com a gíria".
Crítica com senso de humor, muito inteligente!
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