Parte 4 de 5 da peça ácida O amor segundo o Diabo

De Rafa Lima

6. A batalha pela mente do suicida

(Começa a tocar a música “No surprises” do Radiohead, que se prolonga por algum tempo até ser interrompida por um grito de raiva em meio à escuridão).
DIABO – (Dos bastidores). Aonde pensa que vai, Miguel?
(Corte rápido. Luz. O HOMEM como o SUICIDA e MIGUEL estão em cena).
MIGUEL – Está mesmo cogitando se jogar lá embaixo? São oito andares.
SUICIDA – Estou, mas pelo jeito você veio me convencer a não cometer tamanha burrada.
MIGUEL – Sim. Meu nome é Miguel, sou arcanjo.
SUICIDA – Como é que é? Você é uma mulher!
MIGUEL – Apenas um disfarce.
SUICIDA – Sei.
MIGUEL – Quer desabafar?
SUICIDA – Você está mais maluca do que eu.
MIGUEL – Deixe-me ajudá-lo.
SUICIDA – Você não tem como.
MIGUEL – Está fazendo isso porque ela, a mulher mais amada do planeta, abandonou você depois de tantos anos juntos e agora nada mais parece ter importância?
SUICIDA – O quê?
MIGUEL – Não foi por isso que você veio parar no seu inferno particular? Que abriu mão da sua identidade? E, ainda mais, da sua liberdade?
SUICIDA – Como sabe disso? Quem é você?
MIGUEL – Já disse, vim ajudá-lo.
SUICIDA – Estou ficando louco. Não me faltava mais nada, um anjo.
MIGUEL – Arcanjo.
SUICIDA – Se sabe tanto sobre mim, concorda que estou sendo punido por ser psicologicamente sólido. Ela acreditou que eu agüentaria o tranco. Ela estava errada, a vampira. Quanto mais ela me respeita, mais dura é a ação dela contra mim. Que contraditório.
MIGUEL – Calma, rapaz. Ela amou demais, ela se deu por inteira a você. Só não segurou mais a onda.
SUICIDA – Para ela tudo precisa ser tão carregado de deslumbramento. Só que eu sou real. Ela não agüenta o que é real por muito tempo, por isso, ela foge.
MIGUEL – Ela desejou você por um longo período, lembre-se disso. Você já teve tantas mulheres antes dela. Já fez sofrer e já sofreu. Conhece bem a abstinência após a separação. Por que agora age de forma tão autodestrutiva? O que mudou? Onde está o seu amor próprio?
SUICIDA – Não sei mais o que é isso. Fiquei muito dependente dela. Eu desenvolvi transtorno obsessivo compulsivo em relação às mulheres.
MIGUEL – Controle a compulsão! Você precisa domesticar a dor. Na perda o melhor é manter a memória numa lembrança morna, a caminho do resfriamento, mas sem abrir mão do que houve de inesquecível.
SUICIDA – Que conversa mole! Tudo o que sobra é o azedume!
MIGUEL – Nem sempre. O passado fez de você quem é.
SUICIDA – O passado é o Diabo!
(Surge o DIABO).
DIABO – Sabia que sentiria saudade de mim. Então, foi aqui que você se escondeu, Pinóquio? Não foi boa idéia agir por impulso. Aqui fora só vai encontrar dor. Logo vi que ao sair do meu território só poderia parar num lugar de desespero. Quer dizer que vai pular lá embaixo?
MIGUEL – Ele reencontrou quem era antes de se deixar levar.
DIABO – É mesmo?
SUICIDA – Até agora além do vazio só me resta raiva. (Berra). Não se aproximem de mim!
DIABO – Como podem ver, o meu cliente necessita de amparo existencial. O melhor amigo do homem é o advogado.
SUICIDA – Eu não sou seu cliente!
DIABO – Por isso está pensando em pular lá embaixo. Está sofrendo muito, o coitadinho. (Reflete). Se uma alma condenada se suicida será que ela se redime às avessas? Que baita paradoxo.
MIGUEL – Ele não é uma alma condenada. Você o fez acreditar nisso. Não o confunda, demônio! Você está vivo, rapaz!
SUICIDA – Só queria que ela soubesse que eu a amei como nenhum outro homem vai amar. Ela sabe disso, ela sabe disso.
DIABO – Que megalomania! Diga a verdade, fedelho, agora que foi abandonado você quer fazê-la sofrer.
SUICIDA – Nada disso. Só quero que ela jamais se esqueça de que eu fui um homem e tanto.
DIABO – Não seja idiota, pivete! Pise nela. Maltrate-a nas emoções. Não existe mulher tão boa na cama como aquela que quer resgatar a auto-estima ferida. Quanta intensidade! U-hu! É daquela mulher em forma de tempestade que você sente tanta falta, não dessa que o deixou. Otário!
SUICIDA – Sim, sim, sim! É aquela ausência que me despedaça!
DIABO – Você quer ser um homem bom e admirado, seja lá o que isso signifique, quer construir um porto seguro, mas nas internas sente também uma vontade violenta pelo caos! Pela adrenalina da queda livre! Atire-se.
MIGUEL – Você não precisa mais se submeter a isso. Já percebeu que merece muito mais.
DIABO – Deixe-me ver se entendi bem. Antes de chegar ao inferno, você era um homem que gostava mais de livros do que de carros, mais de mulheres do que de livros, mais da mulher do que das mulheres, só que conquistou e perdeu a sua preferida com a mesma velocidade e então não quis mais ser quem era. É para voltar a ser esse fodido que você agora quer ser livre?
SUICIDA – Eu sou livre.
MIGUEL – Eles são livres.
DIABO – São livres, mas não querem fazer escolhas. São livres, mas não aceitam as conseqüências.
SUICIDA – Que conseqüências?
DIABO – Tudo acaba. Vai pular?
SUICIDA – Para me salvar agora apenas algo que me dê sensação de poder.
DIABO – Popularmente conhecido como bolagato. Alguém entendeu? (Caso alguém na platéia tenha rido à menção de bolagato, o DIABO aponta em silêncio para a região de onde veio o som em sinal de cumplicidade).
SUICIDA – O que é isso?
DIABO – Detesto explicar a piada, bolagato, ballcat.
SUICIDA – Ballcat?
DIABO – Boquete, seu quadrúpede depressivo!
MIGUEL – Calado, maldito!
DIABO – Sugue o que oferece quem com você se envolve agora, satisfeito o apetite jogue o bagaço fora!
SUICIDA – (Tendo uma visão). Vejam quem vem ali.
MIGUEL – Quem?
SUICIDA – Mas como é possível? É o fantasma da minha mãe.
(Muda a luz. DIABO e MIGUEL desaparecem. Surge a MULHER como o FANTASMA DA MÃE).
FANTASMA DA MÃE – Filho, não cometa essa loucura! Você sempre usou e abusou das mulheres que eram loucas por você e se maltratava por um heroísmo romântico boboca com aquelas que considerava um desafio. Não desista da alegria, menino! Elas admiram você quando se mostra forte. Seja emocionalmente forte. Não pule! Não se mate por ser viciado em mulheres!
SUICIDA – Você não é o espectro da minha mãe, é apenas uma representação da minha mente perturbada.
FANTASMA DA MÃE – Vingue a minha morte, filho!
SUICIDA – Vingá-la, mas por quê?
FANTASMA DA MÃE - Pensando bem, você tem razão. Eu ainda não morri. Vem me visitar, filho, estou com saudade.
(A luz volta a ser o que era, some o FANTASMA DA MÃE, reaparecem o DIABO e MIGUEL).
SUICIDA – Como não seguir essas idiotas fórmulas do ego? Como não reduzir o encontro a dois a limitadas obsessões de vaidade?
MIGUEL – Em briga de pessoas que se amam não interessa mais quem tem razão se os dois perdem.
DIABO – Balela! O sentido humano é a busca pelo conflito!
SUICIDA – Eu quero ser leve.
DIABO – Não vai mais pular? Pula, vai. Se for realmente leve vai cair como uma pluma.
SUICIDA – Eu sou egocêntrico demais para me matar. Sem falar que até um simples suicídio vocês transformam em duelo de dominação.
MIGUEL – Agora que é livre, pode caminhar sozinho. Não precisa de muletas espirituais. Basta ter fé na vida.
DIABO – (Para o suicida). Ei, amigo, ofereço a você as mulheres que quiser cheias de desejo se concordar em participar do meu grande final.
SUICIDA – Combinado.
MIGUEL – Não desista da sua liberdade!
SUICIDA – Não desistirei. Já compreendi que vocês não passam de ilusões da minha cabeça.
MIGUEL – A-ha! Perdeu, demônio. Adeus.
DIABO – Nos veremos antes disso, arcanjo.
(Saem todos. Entra a MULHER, correndo).
MULHER – Por que estão voltando para lá? Pensei que agora nós dois seríamos livres. Eu não me lembro quem eu era antes de chegar aqui. Mas não posso abandoná-lo. Ele esteve comigo nos momentos mais difíceis. Prometo que é a última vez que vou até lá, sei que não deveria, sim, é a última vez! É a última vez que vou até lá. Sim, é a última vez! A última.

Continua na parte final...

O sentimento não pode parar!

Pague pelos anúncios e tenha bons frutos no amor! (Ou aprenda fórmulas de ironia)

Veja filmes do Monty Phython, leia Preacher, ouça Paulinho da Viola, faça sexo com cuidados básicos, volte sempre ao Fantástico mundo do Rafa!

3 comentários:

Alice disse...

Uau! Você consegue no texto conferir densidade ao senso de humor. Palmas para o seu talento. Adorei essa cena. Aguardo o fim da peça! Beijão.

Fernando disse...

Ballcat?, hehehe.

Vasco disse...

Goooool!!!!!!!!!!!!!