Parte 2 de 3 do conto O prêmio

De Rafa Lima

“Essa porcaria não começa?”.
“Calma, Heleno. Vai dar tudo certo”.
O silêncio mastiga pastilhas anti-fumo.
Enquanto aguarda, por minutos que considera desperdiçados em meio ao auditório lotado, Heleno delira e por se acreditar antecipadamente derrotado na noite de hoje, uma vez que está indicado como melhor diretor ao lado do veterano papa-prêmios Vitorino Palocci e de três estreantes bem-cotados, imagina-se aos berros diante da platéia em franco estarrecimento: “Que se foda! O meu filme é maior do que os seus brinquedos de vaidade. Enfiem esse prêmio no cu!”. De repente, percebe-se em flagrante riso solitário. “Há muito tempo não ria com esse gosto. Que maravilha!”.
“O que foi, Heleno? Está histérico?”.
“Nada demais. Pode relaxar”.
Nos tempos recentes, Heleno anda desanimado, a perda de Ella mais o fracasso de bilheteria do filme, 3333 espectadores no total pagaram ingresso em duas semanas de exibição no Rio de Janeiro, em São Paulo e em uma sala em Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Recife e Fortaleza, geraram um amargor durante as noites, sensação que insistia em permanecer ao longo dos dias. E agora mais essa! Comparecer ao Festival. Aeroporto, avião, cagaço, morre de medo de voar, outro aeroporto, táxi, hotel, entrevistas aos jornalistas no próprio hotel, noite solitária ou não, passeio pela cidade, mais entrevistas, hotel, nervosismo a contragosto bem disfarçado, cerimônia de premiação, encontro com toda aquela fauna e flora, decepção silenciosa menos pelo prêmio já perdido mais pela vontade de que o filme tivesse maior visibilidade, festa sem cara de festa mais com jeito de bastidores de propaganda de vodka, pessoas só suportáveis porque a gente sabe beber muito bem, repetitivos sorrisos sustentados à argamassa social, alucinação controlada, papinho aqui, papinho acolá, jovens aspirantes a atriz, volta ao hotel, talvez sexo, talvez televisão para dar sono, partida, sorrisos de despedidas ingênuos ou também falsificados, táxi, aeroporto, avião, cagaço e melancolia, “Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara, essa suja!”. E agora mais essa! Muito movimento para pouca ação. “Desconfio da inteligência dos cinéfilos”. Ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, por que não se tornou um advogado, então?
O diretor e roteirista estava determinado a não comparecer à premiação, mas foi convencido por questões práticas do mundo. “Ou você vai, ou pode esquecer o próximo filme”, aconselhou Olívio. O roteiro de Os inadequados já fora escrito por Heleno e elogiado pelo pessoal da produtora. Agora, falta a grana! “Mantenha os seus contatos sempre bem lubrificados, Heleno”, Ella costumava dizer. A palavra lubrificados fazia com que o diretor pensasse em fazer amor com a esposa, às vezes, via-se penetrando-a na boceta, às vezes, no cu, às vezes, só um boquetinho alegre, mas, não importava o orifício, com muito sentimento, “te amo, lindinha! Te amo!”, mas Heleno não revelava a ela que a amava tanto. A hiper-sinceridade só surgia em temas negativos sob a forma de crítica repleta de acidez. “Que hábito comum reprimir o desejo mais ingênuo por vergonha de ser considerado tolo, guardando-o em um caixote, modelando-o de acordo com a expectativa da parceira, trancafiando o gatuno da tranqüilidade por uma suposta boa causa, que hábito comum, silenciar-se diante da vontade de trepar com o infinito”.
Ella Benarrivo, a atriz do filme, ex-esposa do diretor, de quem Heleno imaginava em silêncio que, por guardar em seu íntimo um ideal tão magnânimo de esplendor, em momento surpreendente, ela não se contivesse e arrotasse luz. Idiota! Infelizmente para ele, o casamento chegou ao fim. “Antes de dormir, Ella botava perfume”, recorda-se o diretor com carinho que corrói. “Heleno, você vive no mundo da Lua! Como artista faz de você um gênio, mas como marido torna você um merda! Não agüento mais esse descaso”. Descasaram! Heleno desconfia de que ela tenha sido aconselhada pelo empresário. Logo, uma oportunidade de crescimento no mercado teria surgido diante de Ella. Heleno se tornara um atraso de vida, depois de tanto que oferecera a ela. Mesmo assim, o diretor-pamonha sente falta de se aconchegar na alma dela, “tão amada, a vadiazinha”. Atualmente, casada com um roqueiro drogado, niilista, megalomaníaco e clichê, muito maior no meio artístico do que um cineasta-cabeça sarcástico. “Só faltava agora ela ser premiada. Que hilário seria!”.

Continua...

O sentimento não pode parar!

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6 comentários:

Alice disse...

Muito bom o texto do cineasta na premiação, quero mais. Ah, mas o texto da peça do amor na visão do diabo ainda é o melhor de todos, adoro!

Alice disse...

Ah, e o pessoinhas tb é divertido demais, bj.

Ingrid disse...

cada vez melhor! keep walking, red label! Beijos mil para escritor mais criativo do Brasil.

Fernando disse...

Que moral, hein, rapaz? Como você faz para manter essa produtividade sem perder a qualidade? Abraço.

Fernando disse...

Ah, esqueci de dizer que li a peça no mês passado e que me amarrei muito na visão do Diabo sobre o amor, parabéns, ri bastante e me fez questionar o cotidiano comum.

Flávia disse...

Oi, que ótimos os textos. Quando vem o final do Prêmio? Parabéns, parabéns. Admiro muito o seu trabalho. Um beijo.