Parte 3 de 3 (Final) do conto O prêmio

De Rafa Lima

A premiação acontece de modo mecânico, enquanto Heleno se move em pensamentos e memórias, sentado na poltrona. Depois de uma chatíssima cerimônia, com discursos de agradecimento repetitivamente auto-referentes dos eleitos melhor qualquer coisa, melhor não me importo ou melhor que se foda!, Ella Benarrivo é anunciada como melhor atriz do ano pelo filme que Heleno dirigiu. Enquanto ela agradece diante da platéia que a aplaude, “em nome de todos da equipe, é lógico, agradeço muito ao diretor do filme, Heleno Fontenelle” e blá, blá, blá, de repente, Heleno é fulminado por um raio de compreensão do mundo. “O objetivo primário do ser humano é a exploração do outro ser humano, dos empregados, dos inimigos, dos amigos, dos amores”. “Mas o que é isso?”, critica-o o superego. “Desse jeito pessimista, não vai conseguir financiamento para o próximo filme”. Sente vontade de fumar. Há quinze anos não se deixava dominar por tamanho desejo. Ella Benarrivo apareceu na noite de ontem na televisão do quarto do hotel em propaganda, beijando um cartão de crédito. “Mulheres buscam a sinceridade do homem, mas, ato paradoxal, punem de uma forma ou de outra o parceiro sincero demais”. “Cerimônia dos infernos!”. “Agora, você a perdeu de vez, meu velho. Como é possível que essa fedelha que você inventou tenha se tornado tão grandiosa para a indústria num espaço de tempo tão ridículo?”. O melhor ator é nomeado. Não interessa aos negócios nem às emoções. Na verdade, Heleno nunca gostou de atores ou atrizes, a não ser em ação, ou, no caso das atrizes, em ação e na cama, por isso, sempre preferiu filmes muito antigos com a garantia de que o elenco estivesse morto. “Pronto, chegou a hora de fingir satisfação pela alegria de outro diretor, quando na verdade ele nem fede, nem cheira”. Heleno não queria estar aqui. “Ninguém é melhor. Arte não é competição, nem gincana de colégio em traje de gala”. “O melhor diretor do ano é...”, diz a apresentadora do prêmio para se calar de propósito em segundos de suspense, “... Heleno Fontenelle pelo filme Ensaio perverso sobre o tédio!”.
“O quê?”.
“Dá-lhe, Heleno! Parabéns”, abraça-o o produtor.
Uma expressão de incredulidade se faz notar no rosto do diretor premiado, enquanto ele caminha pelo corredor do auditório, um, dois, três degraus, o palco!, a apresentadora, atriz renomada no país todo a quem Heleno não conhecia pessoalmente, entrega-lhe o troféu, “nossa! É pesado!”, “parabéns, Heleno!”, diz ela, após beijá-lo no rosto, ele agradece e enfrenta a platéia de pé que o reverencia com palmas ruidosas. Inesperadamente, Heleno encontra Ella na terceira fileira ao lado do molecote-astro. Por alguns segundos, reconhece um carinhoso olhar de cumplicidade que Ella costumava oferecer a ele em momentos que desejava fazer o diretor se sentir especial. Afinal, Heleno fala.
“Nunca imaginei que estaria aqui. É realmente uma surpresa. Muito obrigado a todos que participaram do filme. Agradeço também a quem assistiu. O prêmio é de cada um de vocês da equipe”.
Pensa em mandar todos para o inferno. “Que bela chance!”.
“Agradeço aos patrocinadores e a todos os acionistas da minha alma. Sem vocês a arte continuaria mendiga! Vamos beber. Talvez hoje a gente consiga uma cirrose”.
A platéia explode em risos.
“Obrigado. Obrigado ao carinho de todos”.
Rapidamente, o diretor cruza o palco e desaparece em uma das coxias. “Talvez eu estivesse errado em desconfiar da inteligência dos cinéfilos. Talvez eles estejam evoluindo e eu nem percebi”, reflete Heleno sem conter um instantâneo sorriso de egocentrismo ao natural. “Melhor do que isso só os antidepressivos”.

Fim


........... Em breve, O premiado ...........


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Parte 2 de 3 do conto O prêmio

De Rafa Lima

“Essa porcaria não começa?”.
“Calma, Heleno. Vai dar tudo certo”.
O silêncio mastiga pastilhas anti-fumo.
Enquanto aguarda, por minutos que considera desperdiçados em meio ao auditório lotado, Heleno delira e por se acreditar antecipadamente derrotado na noite de hoje, uma vez que está indicado como melhor diretor ao lado do veterano papa-prêmios Vitorino Palocci e de três estreantes bem-cotados, imagina-se aos berros diante da platéia em franco estarrecimento: “Que se foda! O meu filme é maior do que os seus brinquedos de vaidade. Enfiem esse prêmio no cu!”. De repente, percebe-se em flagrante riso solitário. “Há muito tempo não ria com esse gosto. Que maravilha!”.
“O que foi, Heleno? Está histérico?”.
“Nada demais. Pode relaxar”.
Nos tempos recentes, Heleno anda desanimado, a perda de Ella mais o fracasso de bilheteria do filme, 3333 espectadores no total pagaram ingresso em duas semanas de exibição no Rio de Janeiro, em São Paulo e em uma sala em Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Recife e Fortaleza, geraram um amargor durante as noites, sensação que insistia em permanecer ao longo dos dias. E agora mais essa! Comparecer ao Festival. Aeroporto, avião, cagaço, morre de medo de voar, outro aeroporto, táxi, hotel, entrevistas aos jornalistas no próprio hotel, noite solitária ou não, passeio pela cidade, mais entrevistas, hotel, nervosismo a contragosto bem disfarçado, cerimônia de premiação, encontro com toda aquela fauna e flora, decepção silenciosa menos pelo prêmio já perdido mais pela vontade de que o filme tivesse maior visibilidade, festa sem cara de festa mais com jeito de bastidores de propaganda de vodka, pessoas só suportáveis porque a gente sabe beber muito bem, repetitivos sorrisos sustentados à argamassa social, alucinação controlada, papinho aqui, papinho acolá, jovens aspirantes a atriz, volta ao hotel, talvez sexo, talvez televisão para dar sono, partida, sorrisos de despedidas ingênuos ou também falsificados, táxi, aeroporto, avião, cagaço e melancolia, “Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara, essa suja!”. E agora mais essa! Muito movimento para pouca ação. “Desconfio da inteligência dos cinéfilos”. Ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, por que não se tornou um advogado, então?
O diretor e roteirista estava determinado a não comparecer à premiação, mas foi convencido por questões práticas do mundo. “Ou você vai, ou pode esquecer o próximo filme”, aconselhou Olívio. O roteiro de Os inadequados já fora escrito por Heleno e elogiado pelo pessoal da produtora. Agora, falta a grana! “Mantenha os seus contatos sempre bem lubrificados, Heleno”, Ella costumava dizer. A palavra lubrificados fazia com que o diretor pensasse em fazer amor com a esposa, às vezes, via-se penetrando-a na boceta, às vezes, no cu, às vezes, só um boquetinho alegre, mas, não importava o orifício, com muito sentimento, “te amo, lindinha! Te amo!”, mas Heleno não revelava a ela que a amava tanto. A hiper-sinceridade só surgia em temas negativos sob a forma de crítica repleta de acidez. “Que hábito comum reprimir o desejo mais ingênuo por vergonha de ser considerado tolo, guardando-o em um caixote, modelando-o de acordo com a expectativa da parceira, trancafiando o gatuno da tranqüilidade por uma suposta boa causa, que hábito comum, silenciar-se diante da vontade de trepar com o infinito”.
Ella Benarrivo, a atriz do filme, ex-esposa do diretor, de quem Heleno imaginava em silêncio que, por guardar em seu íntimo um ideal tão magnânimo de esplendor, em momento surpreendente, ela não se contivesse e arrotasse luz. Idiota! Infelizmente para ele, o casamento chegou ao fim. “Antes de dormir, Ella botava perfume”, recorda-se o diretor com carinho que corrói. “Heleno, você vive no mundo da Lua! Como artista faz de você um gênio, mas como marido torna você um merda! Não agüento mais esse descaso”. Descasaram! Heleno desconfia de que ela tenha sido aconselhada pelo empresário. Logo, uma oportunidade de crescimento no mercado teria surgido diante de Ella. Heleno se tornara um atraso de vida, depois de tanto que oferecera a ela. Mesmo assim, o diretor-pamonha sente falta de se aconchegar na alma dela, “tão amada, a vadiazinha”. Atualmente, casada com um roqueiro drogado, niilista, megalomaníaco e clichê, muito maior no meio artístico do que um cineasta-cabeça sarcástico. “Só faltava agora ela ser premiada. Que hilário seria!”.

Continua...

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Parte 1 de 3 do conto O prêmio

De Rafa Lima

Como se disfarça o mau-humor sobre o tapete vermelho de premiação cinematográfica? Estado de espírito cinzento que não se modifica em Heleno Fontenelle pelo fato de estar indicado na categoria de melhor diretor do ano. Ele acelera o passo. Sente-se patético vestido sob o elegante traje de pingüim. “Heleno!”, “uma palavrinha, por favor!”, “Heleno, estamos ao vivo!”, “Fale comigo, Heleno!”, confrontam-se as vozes dos repórteres localizados atrás da grade que os separa dos artistas que chegam à cerimônia e à frente da outra barreira de metal que os mantém destacados do grande público. Microfones e flashes em pronta ereção. Heleno se esforça para tratá-los com gentileza, aproximando-se com um meio-sorriso. As mesmas perguntas de sempre permitem respostas óbvias. “Nervosismo nenhum”, “sim, estou muito feliz com a reação da crítica ao filme. Só esperava mais do público”, “não considero o filme tão polêmico assim”, “não vou falar sobre o fim do meu casamento”, “boa festa para todos”. Apressado, Heleno se afasta. Detesta entrevistas. É tomado pela vontade de beber algo forte.
Dentro do auditório, avista muitos pingüins, que como ele escondem o desconforto, pavões coloridos e peruas emplumadas. “Eventos de gala são tão charmosos quanto dentes de ouro”. Logo, Heleno se vê cercado de gente meiodesconhecida, fulaninho, “está nervoso?”, sicraninho, “o filme é espetacular, Heleno. É espetacular!”, não-sei-quem, “quanta elegância, meu querido. Você é tão jovial”, não-me-lembro-o-nome, “o meu lugar é perto do seu”, quem-diabos-é-você, meu filho?, “noto no seu filme a mistura de influências da estética neo-realista italiana da segunda metade do século 20 com a acidez juvenil do Tarantino”, a-delicinha-da-noite, “o meu nome é Fernanda. Que prazer imenso conhecê-lo. Adorei o filme”. Heleno sorri com intenção pela primeira vez desde que chegou. Caminha até a poltrona onde em breve terá início a sessão de tortura chinesa. “Somos tão talentosos e felizes”, rosna para si. “Por que me defendo tanto dessa gente?”. Heleno ainda não percebeu a presença dela. Nos últimos tempos, em todos os lugares em que enquadra o seu olhar de múltiplas obsessões apenas reconhece a busca por títulos de nobreza social, seja por via econômica, intelectual, política, artística, esportiva, etílica, “ah, nada como uma pessoa que sabe beber direito”, e principalmente erótica ou sentimental. A poltrona de Heleno se encontra na quinta fileira, onde o diretor avista o produtor do filme, Olívio Quitanda, um sujeito gordo, grisalho, cínico, engraçado, merecedor de profunda adjetivação.

“Nervoso, rapaz?”.
“Até você, Olívio?”.
“Não está nervoso?”.
“Deveria estar?”.
“Já viu Ella com o roqueiro?”.

Heleno congela. O silêncio do diretor é a melhor resposta. “Porra, espero não ter que encontrá-la”. Senta-se ao lado do outro. Em silêncio. “Certo! Certo! Tão certo quanto um idiota que toca violão valer mais no imaginário feminino do que um idiota qualquer, mesmo que ele cante como um demônio em agonia”.

“Não a viu ainda, não é mesmo?”.

“Nem quero”.

Heleno baixa o olhar até os próprios joelhos. “Fazer arte! No princípio, era para tentar conquistar mulheres, às vezes funcionava, depois, por uma necessidade de expressar aquilo que não se sabe dizer no cotidiano, ainda mais além, para oferecer versões bem recicladas de velhas visões do ser humano, hoje em dia, por pura vaidade e satisfação do ego. Quanta ostentação para disfarçar a falta de talento!”.

“Essa porcaria não começa?”.


Continua...

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