De Rafa Lima
3. Mais livres do que estão prontos a aceitar
(Toca “Singin´ in the rain”. O DIABO dança com um guarda-chuva em mãos, parodiando a coreografia do musical).
DIABO – What a glorious feeling! Se continuássemos em breve os dois se tornariam Macbeth e Lady Macbeth, apunhalando-se, envenenando-se, mas não queremos ver isso! Queremos entretenimento de conteúdo que nos faça pensar, mas que seja muito divertido. Certo, baixinhos? Estou excitadíssimo! Não sei por que mas me lembra o dia em que Moisés não conseguiu abrir o mar Vermelho e se enfureceu com o Manda-chuva. Tiveram que construir muitos barcos. Alguns afundaram. Os hebreus escravizados no Egito não sabiam nadar direito. Glub, glub, glub. No fim das contas, o faraó, aquela bichona ressentida, sentiu-se aliviado, ordenou ele: (Imita o faraó). “Leva esse seu povo lá para as bandas dos árabes, prometo que serão vizinhos pacíficos”. Mas o mar Vermelho foi um problemão. Ou vocês acreditaram que um velho com um cajado seguido por uma legião de maltrapilhos separou ao meio um dos maiores mares do planeta? E a credibilidade dos outros deuses marítimos? Poseidon, Iemanjá, Aquaman? Hein? Hein? Nada disso! Naquela época a imprensa ainda não existia e já não era livre. Inventaram cada história. A Bíblia é um tablóide místico! Eu sou o Diabo. Posso me dar ao luxo de dizer o que quiser. Oh, vejam quem se aproxima!
(Entra a MULHER como a BIPOLAR).
DIABO – Vejam como está essa menina. Tudo o que deseja é atenção. (Em falsete de princesa). Me amem, pessoas! Me ame, mundo! Hum! Acabo de pescar uma palavra no ar. Bipolaridade! Vamos lá, cocotinha do sarcasmo. Saia e volte quando eu chamar. (Ela sai). Ah, como é espetacular ser o maior vilão da História. Tem os seus contratempos, é verdade. Há muitos idiotas à espreita. (Em tom intelectual). Você é darwinista ou criacionista? Minha gente, se Deus foi criado pelo homem e o homem evoluiu do macaco, Deus evoluiu do macaco. (Explode num lampejo de eletricidade). Euforia!
(Entra a BIPOLAR eufórica).
BIPOLAR – (A 300 km/h). Você não vai acreditar na festa que eu vou mais tarde. Vai estar todo mundo lá. Comprei um vestido lindo. Muita gente bonita. Mega-evento. Estou na vida para ver e ser vista, ora bolas. Não imagina como penei para encontrar o vestido. É lindo. O DJ da festa é muito, muito, muito, muito bom, só dá festas inesquecíveis. Depois ainda vai ter um pós na casa de uma amiga que mora num apartamento es-pe-ta-cu-lar, você nunca viu coisa igual. Que decoração, que decoração! Mas só vou se não encontrar alguém especial. Não um desses carinhas ridículos que costumam entrar na minha vida, mas um homem de verdade. Que delícia! Tenho que ir me aprontar, daqui a seis horas tem uma pré na casa de um amigo também. Nada pode dar errado na noite de hoje. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada... Nada.
DIABO – Isso aí, nada. Agora, pare, querida. Calma, calma, passou. Agora saia e volte do jeitinho que o Diabo gosta. (Ela sai). Como não se apaixonar por uma criaturinha gostosinha como essa? Logo, vocês verão o homem que coloquei no caminho dela. Volte, minha flor. (Com melancolia debochada). Depressão. (Silêncio. Nada acontece. O DIABO se esgueira). Lindinha, venha! Estamos esperando.
BIPOLAR – (Dos bastidores). Desculpe, eu não vou. Estou muito triste. Aconteceram umas paradas aí.
DIABO – (Para a platéia). Adoro o linguajar carioca. (Para a BIPOLAR). Que paradas?
BIPOLAR – Ah, umas coisas feias que me abalaram muito, muito, muito. Tão horríveis que nem tenho vontade de sair de casa.
DIABO – É mesmo? Que tal vir até aqui e me contar pessoalmente?
BIPOLAR – Eu preciso mesmo?
DIABO – Venha de uma vez e pare de frescura.
BIPOLAR – Desse jeito eu não vou. Estou precisando de acolhimento. Não suporto mais ser maltratada.
DIABO – Está certo, minha vitimazinha. Venha aqui, vou cuidar de você.
(Enfim volta a BIPOLAR, arrastando correntes).
BIPOLAR – (Fantasmagórica). O que você quer de mim?
DIABO – O que houve com você? O que significam essas correntes?
BIPOLAR – São as dores que eu carrego.
DIABO – Ei, Cinderela da angústia, já temos simbolismo suficiente por aqui.
BIPOLAR – São dores que não se desprendem.
DIABO – Sei, sei, o ressentimento pelos homens que conquistou e perdeu, o sentimento de ausência de eventos de maior grandeza na vida, a sensação de que aproveitou mal as oportunidades, ora, o tempo está passando, a incapacidade de reiniciar os dias sem se dividir tanto entre o egoísmo e a culpa, ah, existem tantos sabores de sorvete no mundo.
BIPOLAR – Caramba! Perda, ressentimento, ausência, egoísmo, culpa, você é tão exagerado.
DIABO – Eu?
BIPOLAR – (Grita). Você sim!
DIABO – Calma, minha planta carnívora, solte essas correntes por um tempo, liberte o seu ego nas minhas mãos, porque no programa de assistência emocional do Diabo a vida só melhora! Que entre o escolhido.
(Entra o HOMEM como o BÊBADO, tropeçando chaplinianamente).
BÊBADO – Estou aqui, não precisa empurrar.
DIABO – Vejam que exemplo de homem bem-sucedido. Vocês dois precisam se conhecer.
BÊBADO – Que dois? (Pausa). Ah, está contando comigo.
DIABO – Menino monstro, essa é a princesa mofada.
BÊBADO – Vou enganar, não, seu Belzebu! Mor filezão, hein?
BIPOLAR – Como os homens podem ser tão asquerosos?
DIABO – Alguns minutos juntos e descobrirão que são mais parecidos do que imaginam. Comportem-se mal. (Sai).
BIPOLAR – Não vejo sentido nisso tudo. Não vejo mesmo.
BÊBADO – Que tal uma bebidinha?
BIPOLAR – Eu não bebo.
BÊBADO – Como assim? Essa frase que você disse não faz sentido.
BIPOLAR – Você não tem vergonha de ser um alcoólatra?
BÊBADO – Você não tem vergonha de não ter amigos?
BIPOLAR – O que quer dizer?
BÊBADO – Como espera ter amigos se você não bebe?
BIPOLAR – (Agressiva). Eu tenho vários amigos, pode apostar! Eles só são pessoas ocupadas demais para me encontrar sempre. Pessoas importantes!
BÊBADO – Calma, bonitona, não fique zangada. Não precisa ter vergonha de se sentir sozinha.
BIPOLAR – (Furiosa). Eu não me sinto sozinha!
BÊBADO – Tão bonita. Você é uma belezinha que só quer ser compreendida e amada. O mundo já foi tão injusto com você. Uma alma que só precisa de carinho. Quer um abraço?
(O BÊBADO abre os braços e se direciona à moça. A BIPOLAR hesita).
BIPOLAR – Claro que não quero um abraço seu.
BÊBADO – Estou adorando o nosso encontro.
BIPOLAR – Isso não é um encontro. Jamais ficaria com alguém como você.
BÊBADO – Me dê um motivo para não ficar comigo.
BIPOLAR – Você é um bêbado, não tem onde cair morto, não tem classe, é mal vestido, não fala coisas interessantes, é gratuitamente obsceno e o seu cabelo é desgrenhado.
BÊBADO – Eu pedi apenas um.
BIPOLAR – Por que não some de uma vez?
BÊBADO – Acha de verdade que estou bêbado? É apenas um disfarce. Há muitos anos a bebida já não faz mais efeito.
BIPOLAR – É covarde da mesma forma.
BÊBADO – Você vai partir o meu coração?
BIPOLAR – Não, se você desaparecer da minha frente.
BÊBADO – Você é muito metida. (Para amigos imaginários). Ninguém me segura.
BIPOLAR – Não tem mais ninguém aqui.
BÊBADO – Quem você pensa que é, mofada? Você é tão elitista nas suas intenções, mas aposto que sempre dá mais valor para quem pisa em você e a deixa na falta.
BIPOLAR – Até que enfim você acertou uma. Se as minhas escolhas não fossem tão terríveis, não estaria aqui com a escória.
BÊBADO – Me dê uma chance de conquistá-la.
BIPOLAR – Nem morta.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
BIPOLAR – Pode repetir isso quando eu pedir, por favor?
BÊBADO – Tudo o que você quiser, meu anjinho.
BIPOLAR – Só um minuto. (Ela se retira de cena e fala dos bastidores). Pode repetir agora.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
(Volta a BIPOLAR com um megafone).
BIPOLAR – (Fala ao megafone). Porque você é patético, ridículo, grosseiro, desinteressante, nojento, medíocre, anticlímax, representante perpétuo do que há de mais broxante na humanidade. Você não chega aos meus pés. Não passa de um morto-vivo. Que tal desaparecer de vez, seu vômito?
BÊBADO – (Calmo). De acordo. Pode me emprestar o megafone?
BIPOLAR – Aqui está. É lógico que vai tentar me agredir de volta.
BÊBADO – Não sou a favor da violência. (Sóbrio). Embora esteja com vontade de espancá-la como a uma vagabunda maldosa, vou prestar uma homenagem.
BIPOLAR – Homenagem?
BÊBADO – Como funciona isso?
BIPOLAR – Aperte aqui.
BÊBADO – (Ao megafone). Uma mulher com esse jeitinho tão delicado que tu tens me faz entender quão importante é a separação total de bens.
(Sai o BÊBADO, levando o megafone).
BIPOLAR – Foi embora com o meu bem mais precioso, o megafone. Levou também a minha última expectativa de que algo bom pudesse acontecer. Não agüento mais essa condição. Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude! Como se reconstrói a esperança?
(Começa a tocar “Você é feia” do Rogério Skylab. A BIPOLAR se autoflagela. Entra MIGUEL, a música pára).
MIGUEL – Quer liberdade? Já tentou romper com os padrões cristalizados?
BIPOLAR – Preciso de carinho, só que afasto todos aqueles que cativo.
MIGUEL – Você tem que parar de moldar a sua personalidade a partir dos homens com quem se envolve. Você ainda não sabe quem é. Precisa se descobrir. Mas libertar-se e criar uma identidade não significam abrir mão de se divertir, de trocar, até mesmo de amar as pessoas.
BIPOLAR – Alguém me disse que o amor é uma mentira corporativa. Não sei se acredito.
MIGUEL – O desamor é um veneno para o mundo. Liberte-se do que você perdeu, menina.
BIPOLAR – Busco um sentido, mas os outros não me permitem enxergá-lo.
MIGUEL – Os outros não fazem sentido. Eles só passam a existir quando são vistos como pessoas e não apenas como reflexos dos nossos sonhos e dos nossos medos.
BIPOLAR – Hum. Profundo. O que quer dizer?
MIGUEL – Que uma relação não funciona quando você está beijando somente uma representação de si mesmo.
BIPOLAR – Eu quero ir além, mas existem tantos papéis sociais definidos que às vezes tenho medo de agir de forma diferente e ser rejeitada.
MIGUEL – Viver pode ser muito mais do que consumir alegrias e estocar ressentimentos.
BIPOLAR – Tenho que recolher muitos fragmentos para conseguir criar uma identidade.
MIGUEL – Vale a pena tentar. Enquanto isso, divirta-se. Veja quem está ali. É o homem sensível.
(Entra o HOMEM SENSÍVEL).
HOMEM SENSÍVEL – Olá, tudo certinho com vocês?
MIGUEL – Vocês dois se conhecem?
BIPOLAR – Sim, eu o conheço bem.
MIGUEL – Que bom. Faz bem viver junto a pessoas que expandem nossas idéias. Alegria, alegria! (Sai).
HOMEM SENSÍVEL – Há quanto tempo não nos vemos!
BIPOLAR – Pois é.
HOMEM SENSÍVEL – A gente devia aproveitar uns momentos a sós. Mas há olhos invisíveis apontados para a gente.
BIPOLAR – Sempre uma delícia de paranóia.
HOMEM SENSÍVEL – Estou falando a verdade. A sociedade quer resultados.
BIPOLAR – (Ri com prazer redescoberto). Só agora percebi que estava com muita saudade de você, sabia? Você é o máximo, rapaz. Inteligente, divertido, me faz rir, é a companhia mais agradável que tive nos últimos tempos, sem falar no seu conhecimento das coisas, tantas referências, eu respiro o mundo quando estou ao seu lado. Você entende bastante da alma feminina.
(Ele acaricia o rosto dela e cria-se um clima sensual entre os dois).
HOMEM SENSÍVEL – Sabe que eu sou louco por você? Tenho um megatesão reprimido.
BIPOLAR – Também reprimo o tesão, mas não vou ficar falando essas coisas, né? Fora isso, só tem um problema.
HOMEM SENSÍVEL – Qual?
BIPOLAR – Gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto. A BIPOLAR se desespera e tenta reanimá-lo).
BIPOLAR – O que houve? Fale comigo. Responda. Não está respirando. Fale comigo. Não me abandone. Eu não posso viver sem você, por favor, não me abandone. Você é muito especial para mim. Só não me entrego porque você é bom demais, está sempre à disposição, sempre ao meu lado, e assim não serve. Assim não dá para idealizar. Por favor, responda.
(O HOMEM SENSÍVEL se recupera).
BIPOLAR – Oh, você está bem! Que bom.
HOMEM SENSÍVEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Você apagou completamente.
HOMEM SENSÍVEL – Não completamente. Eu ouvi o que você disse.
BIPOLAR – Que safado! Só falei aquilo porque estava desesperada.
HOMEM SENSÍVEL – Vem cá, bonita. (Ele a enlaça). Não tenha medo da alegria que quero dar a você.
BIPOLAR – Só tem uma coisa.
HOMEM SENSÍVEL – O quê?
BIPOLAR – Ainda gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto novamente).
BIPOLAR – De novo não! Alguém me ajude!
(Volta MIGUEL).
MIGUEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Ele morre toda vez em que digo a verdade.
MIGUEL – Geralmente é assim. Fique tranqüila, ele vai se recuperar. Vamos, rapaz, coragem, bola pra frente.
(O HOMEM SENSÍVEL se levanta).
HOMEM SENSÍVEL – Caramba! Parece que passou um caminhão por cima de mim. (Furioso). Pro inferno com os sentimentos!
MIGUEL – Não diga isso, pirralho! Vocês dois não se cansam de ser joguetes na mão do destino?
BIPOLAR – Demais.
HOMEM SENSÍVEL – Pois é.
MIGUEL – É hora de reagir. Tomar as rédeas da situação. Criem os seus caminhos. Inventem uma identidade própria, só como referência. Nomes, histórias, memórias. Dividam-se com quem lhes oferecer algo genuíno. Não acreditem mais em anjos e demônios. Os sentimentos humanos estão guardados além do bem e do mal.
DIABO – (Dos bastidores). O que está fazendo, passarinho?
(Entra o DIABO).
DIABO – Como ousa manipular os meus brinquedos? Fora daqui, sua duas-caras. Para longe de mim, seu frangote.
(HOMEM e MULHER fogem para fora de cena).
DIABO – Será que não posso me divertir em paz com as dores humanas?
MIGUEL – Você não é mais tão poderoso quanto pensa.
DIABO – O que quer dizer com isso?
MIGUEL – Que a humanidade nos ultrapassou. Que basta ao homem e à mulher reconhecer que são responsáveis pela própria doença para ter início a libertação. Basta que não levem as próprias dores tão a sério para que o seu controle desapareça, demônio. Não serão mais suas marionetes. Você só os controla agora porque querem ser grandes através do sofrimento.
DIABO – Balela! Homem e mulher não aceitarão conviver com a dor alheia. Eles precisam nomear culpados para se sentir seguros. O pesar, a culpa e todo o mal precisam vir de fora, vir do outro. Lembra da bichinha do Sartre? Sim, passarinho, no século 21 cada vez mais ‘o inferno são os outros’, n’est pas? Tudo escondido sob um sorriso de argamassa social.
MIGUEL – Você se ilude. Eles são mais livres do que estão prontos a aceitar.
DIABO – Quer ver que não? (Percebe que MIGUEL não está mais em cena). Escondeu-se, passarinho? Sei que me observa. Pois veja isso!
(Entram HOMEM e MULHER como LOS FABULOSOS TEQUILAS).
DIABO – Conheçam Los fabulosos Tequilas. Não passam de uns fantoches de suas feridas. (Em falso tom solene). Nas relações a dois nada melhor do que o bom diálogo. Ação! (Desaparece).
Continua...
O sentimento não pode parar!
Pague pelos anúncios e tenha bons frutos no amor! (Ou aprenda fórmulas de ironia)
Veja filmes do Todd Sollondz (comece por Felicidade, a obra mais sarcástica do cinema), leia Salman Rushdie, ouça Cartola, faça sexo com cuidados básicos, volte sempre ao Fantástico mundo do Rafa!
3. Mais livres do que estão prontos a aceitar
(Toca “Singin´ in the rain”. O DIABO dança com um guarda-chuva em mãos, parodiando a coreografia do musical).
DIABO – What a glorious feeling! Se continuássemos em breve os dois se tornariam Macbeth e Lady Macbeth, apunhalando-se, envenenando-se, mas não queremos ver isso! Queremos entretenimento de conteúdo que nos faça pensar, mas que seja muito divertido. Certo, baixinhos? Estou excitadíssimo! Não sei por que mas me lembra o dia em que Moisés não conseguiu abrir o mar Vermelho e se enfureceu com o Manda-chuva. Tiveram que construir muitos barcos. Alguns afundaram. Os hebreus escravizados no Egito não sabiam nadar direito. Glub, glub, glub. No fim das contas, o faraó, aquela bichona ressentida, sentiu-se aliviado, ordenou ele: (Imita o faraó). “Leva esse seu povo lá para as bandas dos árabes, prometo que serão vizinhos pacíficos”. Mas o mar Vermelho foi um problemão. Ou vocês acreditaram que um velho com um cajado seguido por uma legião de maltrapilhos separou ao meio um dos maiores mares do planeta? E a credibilidade dos outros deuses marítimos? Poseidon, Iemanjá, Aquaman? Hein? Hein? Nada disso! Naquela época a imprensa ainda não existia e já não era livre. Inventaram cada história. A Bíblia é um tablóide místico! Eu sou o Diabo. Posso me dar ao luxo de dizer o que quiser. Oh, vejam quem se aproxima!
(Entra a MULHER como a BIPOLAR).
DIABO – Vejam como está essa menina. Tudo o que deseja é atenção. (Em falsete de princesa). Me amem, pessoas! Me ame, mundo! Hum! Acabo de pescar uma palavra no ar. Bipolaridade! Vamos lá, cocotinha do sarcasmo. Saia e volte quando eu chamar. (Ela sai). Ah, como é espetacular ser o maior vilão da História. Tem os seus contratempos, é verdade. Há muitos idiotas à espreita. (Em tom intelectual). Você é darwinista ou criacionista? Minha gente, se Deus foi criado pelo homem e o homem evoluiu do macaco, Deus evoluiu do macaco. (Explode num lampejo de eletricidade). Euforia!
(Entra a BIPOLAR eufórica).
BIPOLAR – (A 300 km/h). Você não vai acreditar na festa que eu vou mais tarde. Vai estar todo mundo lá. Comprei um vestido lindo. Muita gente bonita. Mega-evento. Estou na vida para ver e ser vista, ora bolas. Não imagina como penei para encontrar o vestido. É lindo. O DJ da festa é muito, muito, muito, muito bom, só dá festas inesquecíveis. Depois ainda vai ter um pós na casa de uma amiga que mora num apartamento es-pe-ta-cu-lar, você nunca viu coisa igual. Que decoração, que decoração! Mas só vou se não encontrar alguém especial. Não um desses carinhas ridículos que costumam entrar na minha vida, mas um homem de verdade. Que delícia! Tenho que ir me aprontar, daqui a seis horas tem uma pré na casa de um amigo também. Nada pode dar errado na noite de hoje. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada... Nada.
DIABO – Isso aí, nada. Agora, pare, querida. Calma, calma, passou. Agora saia e volte do jeitinho que o Diabo gosta. (Ela sai). Como não se apaixonar por uma criaturinha gostosinha como essa? Logo, vocês verão o homem que coloquei no caminho dela. Volte, minha flor. (Com melancolia debochada). Depressão. (Silêncio. Nada acontece. O DIABO se esgueira). Lindinha, venha! Estamos esperando.
BIPOLAR – (Dos bastidores). Desculpe, eu não vou. Estou muito triste. Aconteceram umas paradas aí.
DIABO – (Para a platéia). Adoro o linguajar carioca. (Para a BIPOLAR). Que paradas?
BIPOLAR – Ah, umas coisas feias que me abalaram muito, muito, muito. Tão horríveis que nem tenho vontade de sair de casa.
DIABO – É mesmo? Que tal vir até aqui e me contar pessoalmente?
BIPOLAR – Eu preciso mesmo?
DIABO – Venha de uma vez e pare de frescura.
BIPOLAR – Desse jeito eu não vou. Estou precisando de acolhimento. Não suporto mais ser maltratada.
DIABO – Está certo, minha vitimazinha. Venha aqui, vou cuidar de você.
(Enfim volta a BIPOLAR, arrastando correntes).
BIPOLAR – (Fantasmagórica). O que você quer de mim?
DIABO – O que houve com você? O que significam essas correntes?
BIPOLAR – São as dores que eu carrego.
DIABO – Ei, Cinderela da angústia, já temos simbolismo suficiente por aqui.
BIPOLAR – São dores que não se desprendem.
DIABO – Sei, sei, o ressentimento pelos homens que conquistou e perdeu, o sentimento de ausência de eventos de maior grandeza na vida, a sensação de que aproveitou mal as oportunidades, ora, o tempo está passando, a incapacidade de reiniciar os dias sem se dividir tanto entre o egoísmo e a culpa, ah, existem tantos sabores de sorvete no mundo.
BIPOLAR – Caramba! Perda, ressentimento, ausência, egoísmo, culpa, você é tão exagerado.
DIABO – Eu?
BIPOLAR – (Grita). Você sim!
DIABO – Calma, minha planta carnívora, solte essas correntes por um tempo, liberte o seu ego nas minhas mãos, porque no programa de assistência emocional do Diabo a vida só melhora! Que entre o escolhido.
(Entra o HOMEM como o BÊBADO, tropeçando chaplinianamente).
BÊBADO – Estou aqui, não precisa empurrar.
DIABO – Vejam que exemplo de homem bem-sucedido. Vocês dois precisam se conhecer.
BÊBADO – Que dois? (Pausa). Ah, está contando comigo.
DIABO – Menino monstro, essa é a princesa mofada.
BÊBADO – Vou enganar, não, seu Belzebu! Mor filezão, hein?
BIPOLAR – Como os homens podem ser tão asquerosos?
DIABO – Alguns minutos juntos e descobrirão que são mais parecidos do que imaginam. Comportem-se mal. (Sai).
BIPOLAR – Não vejo sentido nisso tudo. Não vejo mesmo.
BÊBADO – Que tal uma bebidinha?
BIPOLAR – Eu não bebo.
BÊBADO – Como assim? Essa frase que você disse não faz sentido.
BIPOLAR – Você não tem vergonha de ser um alcoólatra?
BÊBADO – Você não tem vergonha de não ter amigos?
BIPOLAR – O que quer dizer?
BÊBADO – Como espera ter amigos se você não bebe?
BIPOLAR – (Agressiva). Eu tenho vários amigos, pode apostar! Eles só são pessoas ocupadas demais para me encontrar sempre. Pessoas importantes!
BÊBADO – Calma, bonitona, não fique zangada. Não precisa ter vergonha de se sentir sozinha.
BIPOLAR – (Furiosa). Eu não me sinto sozinha!
BÊBADO – Tão bonita. Você é uma belezinha que só quer ser compreendida e amada. O mundo já foi tão injusto com você. Uma alma que só precisa de carinho. Quer um abraço?
(O BÊBADO abre os braços e se direciona à moça. A BIPOLAR hesita).
BIPOLAR – Claro que não quero um abraço seu.
BÊBADO – Estou adorando o nosso encontro.
BIPOLAR – Isso não é um encontro. Jamais ficaria com alguém como você.
BÊBADO – Me dê um motivo para não ficar comigo.
BIPOLAR – Você é um bêbado, não tem onde cair morto, não tem classe, é mal vestido, não fala coisas interessantes, é gratuitamente obsceno e o seu cabelo é desgrenhado.
BÊBADO – Eu pedi apenas um.
BIPOLAR – Por que não some de uma vez?
BÊBADO – Acha de verdade que estou bêbado? É apenas um disfarce. Há muitos anos a bebida já não faz mais efeito.
BIPOLAR – É covarde da mesma forma.
BÊBADO – Você vai partir o meu coração?
BIPOLAR – Não, se você desaparecer da minha frente.
BÊBADO – Você é muito metida. (Para amigos imaginários). Ninguém me segura.
BIPOLAR – Não tem mais ninguém aqui.
BÊBADO – Quem você pensa que é, mofada? Você é tão elitista nas suas intenções, mas aposto que sempre dá mais valor para quem pisa em você e a deixa na falta.
BIPOLAR – Até que enfim você acertou uma. Se as minhas escolhas não fossem tão terríveis, não estaria aqui com a escória.
BÊBADO – Me dê uma chance de conquistá-la.
BIPOLAR – Nem morta.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
BIPOLAR – Pode repetir isso quando eu pedir, por favor?
BÊBADO – Tudo o que você quiser, meu anjinho.
BIPOLAR – Só um minuto. (Ela se retira de cena e fala dos bastidores). Pode repetir agora.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
(Volta a BIPOLAR com um megafone).
BIPOLAR – (Fala ao megafone). Porque você é patético, ridículo, grosseiro, desinteressante, nojento, medíocre, anticlímax, representante perpétuo do que há de mais broxante na humanidade. Você não chega aos meus pés. Não passa de um morto-vivo. Que tal desaparecer de vez, seu vômito?
BÊBADO – (Calmo). De acordo. Pode me emprestar o megafone?
BIPOLAR – Aqui está. É lógico que vai tentar me agredir de volta.
BÊBADO – Não sou a favor da violência. (Sóbrio). Embora esteja com vontade de espancá-la como a uma vagabunda maldosa, vou prestar uma homenagem.
BIPOLAR – Homenagem?
BÊBADO – Como funciona isso?
BIPOLAR – Aperte aqui.
BÊBADO – (Ao megafone). Uma mulher com esse jeitinho tão delicado que tu tens me faz entender quão importante é a separação total de bens.
(Sai o BÊBADO, levando o megafone).
BIPOLAR – Foi embora com o meu bem mais precioso, o megafone. Levou também a minha última expectativa de que algo bom pudesse acontecer. Não agüento mais essa condição. Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude! Como se reconstrói a esperança?
(Começa a tocar “Você é feia” do Rogério Skylab. A BIPOLAR se autoflagela. Entra MIGUEL, a música pára).
MIGUEL – Quer liberdade? Já tentou romper com os padrões cristalizados?
BIPOLAR – Preciso de carinho, só que afasto todos aqueles que cativo.
MIGUEL – Você tem que parar de moldar a sua personalidade a partir dos homens com quem se envolve. Você ainda não sabe quem é. Precisa se descobrir. Mas libertar-se e criar uma identidade não significam abrir mão de se divertir, de trocar, até mesmo de amar as pessoas.
BIPOLAR – Alguém me disse que o amor é uma mentira corporativa. Não sei se acredito.
MIGUEL – O desamor é um veneno para o mundo. Liberte-se do que você perdeu, menina.
BIPOLAR – Busco um sentido, mas os outros não me permitem enxergá-lo.
MIGUEL – Os outros não fazem sentido. Eles só passam a existir quando são vistos como pessoas e não apenas como reflexos dos nossos sonhos e dos nossos medos.
BIPOLAR – Hum. Profundo. O que quer dizer?
MIGUEL – Que uma relação não funciona quando você está beijando somente uma representação de si mesmo.
BIPOLAR – Eu quero ir além, mas existem tantos papéis sociais definidos que às vezes tenho medo de agir de forma diferente e ser rejeitada.
MIGUEL – Viver pode ser muito mais do que consumir alegrias e estocar ressentimentos.
BIPOLAR – Tenho que recolher muitos fragmentos para conseguir criar uma identidade.
MIGUEL – Vale a pena tentar. Enquanto isso, divirta-se. Veja quem está ali. É o homem sensível.
(Entra o HOMEM SENSÍVEL).
HOMEM SENSÍVEL – Olá, tudo certinho com vocês?
MIGUEL – Vocês dois se conhecem?
BIPOLAR – Sim, eu o conheço bem.
MIGUEL – Que bom. Faz bem viver junto a pessoas que expandem nossas idéias. Alegria, alegria! (Sai).
HOMEM SENSÍVEL – Há quanto tempo não nos vemos!
BIPOLAR – Pois é.
HOMEM SENSÍVEL – A gente devia aproveitar uns momentos a sós. Mas há olhos invisíveis apontados para a gente.
BIPOLAR – Sempre uma delícia de paranóia.
HOMEM SENSÍVEL – Estou falando a verdade. A sociedade quer resultados.
BIPOLAR – (Ri com prazer redescoberto). Só agora percebi que estava com muita saudade de você, sabia? Você é o máximo, rapaz. Inteligente, divertido, me faz rir, é a companhia mais agradável que tive nos últimos tempos, sem falar no seu conhecimento das coisas, tantas referências, eu respiro o mundo quando estou ao seu lado. Você entende bastante da alma feminina.
(Ele acaricia o rosto dela e cria-se um clima sensual entre os dois).
HOMEM SENSÍVEL – Sabe que eu sou louco por você? Tenho um megatesão reprimido.
BIPOLAR – Também reprimo o tesão, mas não vou ficar falando essas coisas, né? Fora isso, só tem um problema.
HOMEM SENSÍVEL – Qual?
BIPOLAR – Gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto. A BIPOLAR se desespera e tenta reanimá-lo).
BIPOLAR – O que houve? Fale comigo. Responda. Não está respirando. Fale comigo. Não me abandone. Eu não posso viver sem você, por favor, não me abandone. Você é muito especial para mim. Só não me entrego porque você é bom demais, está sempre à disposição, sempre ao meu lado, e assim não serve. Assim não dá para idealizar. Por favor, responda.
(O HOMEM SENSÍVEL se recupera).
BIPOLAR – Oh, você está bem! Que bom.
HOMEM SENSÍVEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Você apagou completamente.
HOMEM SENSÍVEL – Não completamente. Eu ouvi o que você disse.
BIPOLAR – Que safado! Só falei aquilo porque estava desesperada.
HOMEM SENSÍVEL – Vem cá, bonita. (Ele a enlaça). Não tenha medo da alegria que quero dar a você.
BIPOLAR – Só tem uma coisa.
HOMEM SENSÍVEL – O quê?
BIPOLAR – Ainda gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto novamente).
BIPOLAR – De novo não! Alguém me ajude!
(Volta MIGUEL).
MIGUEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Ele morre toda vez em que digo a verdade.
MIGUEL – Geralmente é assim. Fique tranqüila, ele vai se recuperar. Vamos, rapaz, coragem, bola pra frente.
(O HOMEM SENSÍVEL se levanta).
HOMEM SENSÍVEL – Caramba! Parece que passou um caminhão por cima de mim. (Furioso). Pro inferno com os sentimentos!
MIGUEL – Não diga isso, pirralho! Vocês dois não se cansam de ser joguetes na mão do destino?
BIPOLAR – Demais.
HOMEM SENSÍVEL – Pois é.
MIGUEL – É hora de reagir. Tomar as rédeas da situação. Criem os seus caminhos. Inventem uma identidade própria, só como referência. Nomes, histórias, memórias. Dividam-se com quem lhes oferecer algo genuíno. Não acreditem mais em anjos e demônios. Os sentimentos humanos estão guardados além do bem e do mal.
DIABO – (Dos bastidores). O que está fazendo, passarinho?
(Entra o DIABO).
DIABO – Como ousa manipular os meus brinquedos? Fora daqui, sua duas-caras. Para longe de mim, seu frangote.
(HOMEM e MULHER fogem para fora de cena).
DIABO – Será que não posso me divertir em paz com as dores humanas?
MIGUEL – Você não é mais tão poderoso quanto pensa.
DIABO – O que quer dizer com isso?
MIGUEL – Que a humanidade nos ultrapassou. Que basta ao homem e à mulher reconhecer que são responsáveis pela própria doença para ter início a libertação. Basta que não levem as próprias dores tão a sério para que o seu controle desapareça, demônio. Não serão mais suas marionetes. Você só os controla agora porque querem ser grandes através do sofrimento.
DIABO – Balela! Homem e mulher não aceitarão conviver com a dor alheia. Eles precisam nomear culpados para se sentir seguros. O pesar, a culpa e todo o mal precisam vir de fora, vir do outro. Lembra da bichinha do Sartre? Sim, passarinho, no século 21 cada vez mais ‘o inferno são os outros’, n’est pas? Tudo escondido sob um sorriso de argamassa social.
MIGUEL – Você se ilude. Eles são mais livres do que estão prontos a aceitar.
DIABO – Quer ver que não? (Percebe que MIGUEL não está mais em cena). Escondeu-se, passarinho? Sei que me observa. Pois veja isso!
(Entram HOMEM e MULHER como LOS FABULOSOS TEQUILAS).
DIABO – Conheçam Los fabulosos Tequilas. Não passam de uns fantoches de suas feridas. (Em falso tom solene). Nas relações a dois nada melhor do que o bom diálogo. Ação! (Desaparece).
Continua...
O sentimento não pode parar!
Pague pelos anúncios e tenha bons frutos no amor! (Ou aprenda fórmulas de ironia)
Veja filmes do Todd Sollondz (comece por Felicidade, a obra mais sarcástica do cinema), leia Salman Rushdie, ouça Cartola, faça sexo com cuidados básicos, volte sempre ao Fantástico mundo do Rafa!
4 comentários:
A cena nova é muito engraçada e inteligente! Parece que eu conheço a bipolar! Hahahahaa
Sem falar em "Como espera ter amigos se você não bebe?" e no resultado de "gosto de você como amigo".
Estou adorando a peça!
O seu Diabo é ótimo, Rafael! O bêbado é muito engraçado!
Nem sei como demonstrar a alegria que esse texto me causou. Quero muito ler as próximas cenas.
"Poseidon, Iemanjá, Aquaman?".
Caraca, amigo, de onde você tira essas coisas hilárias?
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