De Rafa Lima
6. A batalha pela mente do suicida
(Começa a tocar a música “No surprises” do Radiohead, que se prolonga por algum tempo até ser interrompida por um grito de raiva em meio à escuridão).
DIABO – (Dos bastidores). Aonde pensa que vai, Miguel?
(Corte rápido. Luz. O HOMEM como o SUICIDA e MIGUEL estão em cena).
MIGUEL – Está mesmo cogitando se jogar lá embaixo? São oito andares.
SUICIDA – Estou, mas pelo jeito você veio me convencer a não cometer tamanha burrada.
MIGUEL – Sim. Meu nome é Miguel, sou arcanjo.
SUICIDA – Como é que é? Você é uma mulher!
MIGUEL – Apenas um disfarce.
SUICIDA – Sei.
MIGUEL – Quer desabafar?
SUICIDA – Você está mais maluca do que eu.
MIGUEL – Deixe-me ajudá-lo.
SUICIDA – Você não tem como.
MIGUEL – Está fazendo isso porque ela, a mulher mais amada do planeta, abandonou você depois de tantos anos juntos e agora nada mais parece ter importância?
SUICIDA – O quê?
MIGUEL – Não foi por isso que você veio parar no seu inferno particular? Que abriu mão da sua identidade? E, ainda mais, da sua liberdade?
SUICIDA – Como sabe disso? Quem é você?
MIGUEL – Já disse, vim ajudá-lo.
SUICIDA – Estou ficando louco. Não me faltava mais nada, um anjo.
MIGUEL – Arcanjo.
SUICIDA – Se sabe tanto sobre mim, concorda que estou sendo punido por ser psicologicamente sólido. Ela acreditou que eu agüentaria o tranco. Ela estava errada, a vampira. Quanto mais ela me respeita, mais dura é a ação dela contra mim. Que contraditório.
MIGUEL – Calma, rapaz. Ela amou demais, ela se deu por inteira a você. Só não segurou mais a onda.
SUICIDA – Para ela tudo precisa ser tão carregado de deslumbramento. Só que eu sou real. Ela não agüenta o que é real por muito tempo, por isso, ela foge.
MIGUEL – Ela desejou você por um longo período, lembre-se disso. Você já teve tantas mulheres antes dela. Já fez sofrer e já sofreu. Conhece bem a abstinência após a separação. Por que agora age de forma tão autodestrutiva? O que mudou? Onde está o seu amor próprio?
SUICIDA – Não sei mais o que é isso. Fiquei muito dependente dela. Eu desenvolvi transtorno obsessivo compulsivo em relação às mulheres.
MIGUEL – Controle a compulsão! Você precisa domesticar a dor. Na perda o melhor é manter a memória numa lembrança morna, a caminho do resfriamento, mas sem abrir mão do que houve de inesquecível.
SUICIDA – Que conversa mole! Tudo o que sobra é o azedume!
MIGUEL – Nem sempre. O passado fez de você quem é.
SUICIDA – O passado é o Diabo!
(Surge o DIABO).
DIABO – Sabia que sentiria saudade de mim. Então, foi aqui que você se escondeu, Pinóquio? Não foi boa idéia agir por impulso. Aqui fora só vai encontrar dor. Logo vi que ao sair do meu território só poderia parar num lugar de desespero. Quer dizer que vai pular lá embaixo?
MIGUEL – Ele reencontrou quem era antes de se deixar levar.
DIABO – É mesmo?
SUICIDA – Até agora além do vazio só me resta raiva. (Berra). Não se aproximem de mim!
DIABO – Como podem ver, o meu cliente necessita de amparo existencial. O melhor amigo do homem é o advogado.
SUICIDA – Eu não sou seu cliente!
DIABO – Por isso está pensando em pular lá embaixo. Está sofrendo muito, o coitadinho. (Reflete). Se uma alma condenada se suicida será que ela se redime às avessas? Que baita paradoxo.
MIGUEL – Ele não é uma alma condenada. Você o fez acreditar nisso. Não o confunda, demônio! Você está vivo, rapaz!
SUICIDA – Só queria que ela soubesse que eu a amei como nenhum outro homem vai amar. Ela sabe disso, ela sabe disso.
DIABO – Que megalomania! Diga a verdade, fedelho, agora que foi abandonado você quer fazê-la sofrer.
SUICIDA – Nada disso. Só quero que ela jamais se esqueça de que eu fui um homem e tanto.
DIABO – Não seja idiota, pivete! Pise nela. Maltrate-a nas emoções. Não existe mulher tão boa na cama como aquela que quer resgatar a auto-estima ferida. Quanta intensidade! U-hu! É daquela mulher em forma de tempestade que você sente tanta falta, não dessa que o deixou. Otário!
SUICIDA – Sim, sim, sim! É aquela ausência que me despedaça!
DIABO – Você quer ser um homem bom e admirado, seja lá o que isso signifique, quer construir um porto seguro, mas nas internas sente também uma vontade violenta pelo caos! Pela adrenalina da queda livre! Atire-se.
MIGUEL – Você não precisa mais se submeter a isso. Já percebeu que merece muito mais.
DIABO – Deixe-me ver se entendi bem. Antes de chegar ao inferno, você era um homem que gostava mais de livros do que de carros, mais de mulheres do que de livros, mais da mulher do que das mulheres, só que conquistou e perdeu a sua preferida com a mesma velocidade e então não quis mais ser quem era. É para voltar a ser esse fodido que você agora quer ser livre?
SUICIDA – Eu sou livre.
MIGUEL – Eles são livres.
DIABO – São livres, mas não querem fazer escolhas. São livres, mas não aceitam as conseqüências.
SUICIDA – Que conseqüências?
DIABO – Tudo acaba. Vai pular?
SUICIDA – Para me salvar agora apenas algo que me dê sensação de poder.
DIABO – Popularmente conhecido como bolagato. Alguém entendeu? (Caso alguém na platéia tenha rido à menção de bolagato, o DIABO aponta em silêncio para a região de onde veio o som em sinal de cumplicidade).
SUICIDA – O que é isso?
DIABO – Detesto explicar a piada, bolagato, ballcat.
SUICIDA – Ballcat?
DIABO – Boquete, seu quadrúpede depressivo!
MIGUEL – Calado, maldito!
DIABO – Sugue o que oferece quem com você se envolve agora, satisfeito o apetite jogue o bagaço fora!
SUICIDA – (Tendo uma visão). Vejam quem vem ali.
MIGUEL – Quem?
SUICIDA – Mas como é possível? É o fantasma da minha mãe.
(Muda a luz. DIABO e MIGUEL desaparecem. Surge a MULHER como o FANTASMA DA MÃE).
FANTASMA DA MÃE – Filho, não cometa essa loucura! Você sempre usou e abusou das mulheres que eram loucas por você e se maltratava por um heroísmo romântico boboca com aquelas que considerava um desafio. Não desista da alegria, menino! Elas admiram você quando se mostra forte. Seja emocionalmente forte. Não pule! Não se mate por ser viciado em mulheres!
SUICIDA – Você não é o espectro da minha mãe, é apenas uma representação da minha mente perturbada.
FANTASMA DA MÃE – Vingue a minha morte, filho!
SUICIDA – Vingá-la, mas por quê?
FANTASMA DA MÃE - Pensando bem, você tem razão. Eu ainda não morri. Vem me visitar, filho, estou com saudade.
(A luz volta a ser o que era, some o FANTASMA DA MÃE, reaparecem o DIABO e MIGUEL).
SUICIDA – Como não seguir essas idiotas fórmulas do ego? Como não reduzir o encontro a dois a limitadas obsessões de vaidade?
MIGUEL – Em briga de pessoas que se amam não interessa mais quem tem razão se os dois perdem.
DIABO – Balela! O sentido humano é a busca pelo conflito!
SUICIDA – Eu quero ser leve.
DIABO – Não vai mais pular? Pula, vai. Se for realmente leve vai cair como uma pluma.
SUICIDA – Eu sou egocêntrico demais para me matar. Sem falar que até um simples suicídio vocês transformam em duelo de dominação.
MIGUEL – Agora que é livre, pode caminhar sozinho. Não precisa de muletas espirituais. Basta ter fé na vida.
DIABO – (Para o suicida). Ei, amigo, ofereço a você as mulheres que quiser cheias de desejo se concordar em participar do meu grande final.
SUICIDA – Combinado.
MIGUEL – Não desista da sua liberdade!
SUICIDA – Não desistirei. Já compreendi que vocês não passam de ilusões da minha cabeça.
MIGUEL – A-ha! Perdeu, demônio. Adeus.
DIABO – Nos veremos antes disso, arcanjo.
(Saem todos. Entra a MULHER, correndo).
MULHER – Por que estão voltando para lá? Pensei que agora nós dois seríamos livres. Eu não me lembro quem eu era antes de chegar aqui. Mas não posso abandoná-lo. Ele esteve comigo nos momentos mais difíceis. Prometo que é a última vez que vou até lá, sei que não deveria, sim, é a última vez! É a última vez que vou até lá. Sim, é a última vez! A última.
Continua na parte final...
O sentimento não pode parar!
Pague pelos anúncios e tenha bons frutos no amor! (Ou aprenda fórmulas de ironia)
Veja filmes do Monty Phython, leia Preacher, ouça Paulinho da Viola, faça sexo com cuidados básicos, volte sempre ao Fantástico mundo do Rafa!
Parte 3 de 5 da peça ácida O amor segundo o Diabo
De Rafa Lima
4. Los fabulosos Tequilas
(Em portunhol surreal misturado a outras línguas).
MANUELA – Juan Antonio.
JUAN ANTONIO – Manuela.
MANUELA – Si, soy yo.
JUAN ANTONIO – ¿Que haces acá, mujer?
MANUELA – A pesar de tua violencia, a pesar de tuas traiciones, estoy acá para redimir-te.
JUAN ANTONIO – Fuck!
MANUELA – ¿Qué?
JUAN ANTONIO – Es una neurótica.
MANUELA – Déjame hablar!
JUAN ANTONIO – Mein Gott! Go to hell, bambina!
MANUELA – ¿Que lengua estamos hablando?
JUAN ANTONIO – No somos más nada. Estás confundiendo.
MANUELA – Yo no lo reconozco.
JUAN ANTONIO – Putana!
MANUELA – ¡Broja! (Lê-se Brorra).
JUAN ANTONIO – ¿Qué?
MANUELA – ¡Broja!
JUAN ANTONIO – No comprendo.
MANUELA – Es muy burrito.
JUAN ANTONIO – What´s the fucking deal, bitch?
MANUELA – Antes usted me amaba, ahora yo soy un peso muerto.
JUAN ANTONIO – An-rã!
MANUELA - ¿Qué?
JUAN ANTONIO – An-rã!
MANUELA – ¿Qué cosa es esa, ‘an-rã’?
JUAN ANTONIO – Significa que usted es una inútil, ragazza.
MANUELA – Que te vas ao diablo!
JUAN ANTONIO – ¡Muera, cucaracha!¡No te quiero más!
MANUELA – Estoy embarazada.
JUAN ANTONIO – ¿Qué?
MANUELA – Embarazada.
JUAN ANTONIO – ¿Qué porra es esa? Io no parlo mandarim.
MANUELA – Grávida, idiota.
JUAN ANTONIO – Grávida e idiota?
MANUELA – No, no, embarazada, idiota.
JUAN ANTONIO – (Filosófico). La donna è mobile qual piuma al vento.
MANUELA – ¡Cobarde! ¿No es majo, cabrán? (Lê-se marro).
JUAN ANTONIO – Majo?
MANUELA – Macho.
JUAN ANTONIO – Ah.
MANUELA – ¿E entonces?
JUAN ANTONIO – Você está mesmo grávida? Tem certeza?
MANUELA – Si, estoy.
JUAN ANTONIO – Como diriam os franceses: ‘Shit!’.
MANUELA – ¿Qué piensas a hacer, corazón?
JUAN ANTONIO – I used to love her but I have to kill her.
MANUELA – ¿Que dices?
(Silêncio).
MANUELA – ¡Entonces!¿Que dices?
JUAN ANTONIO – (Explodindo de alegria). Que vou ser o melhor pai do mundo!
MANUELA – Verdade? Jura que é verdade?
JUAN ANTONIO – (Verdadeiro). Sim. E o nosso filho, se você estiver de acordo, vai se chamar David Lynch.
MANUELA – (Verdadeira). Que nome lindo! Viu só? Ninguém me conhece tão bem quanto você! Conversando a gente se entende.
5. Sempre mais
(Começa a tocar “Heavy metal do senhor” do Zeca Baleiro. Entra o DIABO, radiante).
DIABO – Nada como um bom diálogo! Pena que a pomba da paz entrou em combustão espontânea. Kabum! Convenções de status social ainda mantêm o casal de equilibristas por um fio. Vocês se encontram para se desejar, entregar, apaixonar, possuir, com a mesma intensidade com que em tempos futuros vão se ressentir, acusar e violentar. Vocês não se tratam como gente, mas sim como alvos. Alvos a conquistar para em seguida combater. Por que assumem papéis que não estão interessados em interpretar? Por que decidiram se emocionar um com o outro? Atribuir valores extremos? Poderiam ter ficado apenas com a diversão do sexo. Às vezes é mais saudável separar as coisas. Com mais inteligência, a alegria teria durado mais tempo. Mas não! Vocês querem sempre mais. Vocês querem a dominação. É aí que vocês se dilaceram! Não é verdade, passarinho? Está me ouvindo? Já compreendi o propósito da inesperada visita. Pois saiba que essas duas almas chegaram aos meus domínios com as próprias pernas. É escolha deles estarem aqui. Estão fugindo do passado. Nada tenho a ver. Portanto, não me atrapalhe mais. Quero me divertir com os meus novos brinquedos. Está me ouvindo? (Desconfiado). Parece que não. Onde está você, anjinho? Não volte aqui ou vou depená-lo. Mostre-se ou desapareça! (Enxerga além). Não está aqui. Fugiu com o meu bonequinho. Aonde pensa que vai, Miguel?
(Blecaute total).
Continua...
O sentimento não pode parar!
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4. Los fabulosos Tequilas
(Em portunhol surreal misturado a outras línguas).
MANUELA – Juan Antonio.
JUAN ANTONIO – Manuela.
MANUELA – Si, soy yo.
JUAN ANTONIO – ¿Que haces acá, mujer?
MANUELA – A pesar de tua violencia, a pesar de tuas traiciones, estoy acá para redimir-te.
JUAN ANTONIO – Fuck!
MANUELA – ¿Qué?
JUAN ANTONIO – Es una neurótica.
MANUELA – Déjame hablar!
JUAN ANTONIO – Mein Gott! Go to hell, bambina!
MANUELA – ¿Que lengua estamos hablando?
JUAN ANTONIO – No somos más nada. Estás confundiendo.
MANUELA – Yo no lo reconozco.
JUAN ANTONIO – Putana!
MANUELA – ¡Broja! (Lê-se Brorra).
JUAN ANTONIO – ¿Qué?
MANUELA – ¡Broja!
JUAN ANTONIO – No comprendo.
MANUELA – Es muy burrito.
JUAN ANTONIO – What´s the fucking deal, bitch?
MANUELA – Antes usted me amaba, ahora yo soy un peso muerto.
JUAN ANTONIO – An-rã!
MANUELA - ¿Qué?
JUAN ANTONIO – An-rã!
MANUELA – ¿Qué cosa es esa, ‘an-rã’?
JUAN ANTONIO – Significa que usted es una inútil, ragazza.
MANUELA – Que te vas ao diablo!
JUAN ANTONIO – ¡Muera, cucaracha!¡No te quiero más!
MANUELA – Estoy embarazada.
JUAN ANTONIO – ¿Qué?
MANUELA – Embarazada.
JUAN ANTONIO – ¿Qué porra es esa? Io no parlo mandarim.
MANUELA – Grávida, idiota.
JUAN ANTONIO – Grávida e idiota?
MANUELA – No, no, embarazada, idiota.
JUAN ANTONIO – (Filosófico). La donna è mobile qual piuma al vento.
MANUELA – ¡Cobarde! ¿No es majo, cabrán? (Lê-se marro).
JUAN ANTONIO – Majo?
MANUELA – Macho.
JUAN ANTONIO – Ah.
MANUELA – ¿E entonces?
JUAN ANTONIO – Você está mesmo grávida? Tem certeza?
MANUELA – Si, estoy.
JUAN ANTONIO – Como diriam os franceses: ‘Shit!’.
MANUELA – ¿Qué piensas a hacer, corazón?
JUAN ANTONIO – I used to love her but I have to kill her.
MANUELA – ¿Que dices?
(Silêncio).
MANUELA – ¡Entonces!¿Que dices?
JUAN ANTONIO – (Explodindo de alegria). Que vou ser o melhor pai do mundo!
MANUELA – Verdade? Jura que é verdade?
JUAN ANTONIO – (Verdadeiro). Sim. E o nosso filho, se você estiver de acordo, vai se chamar David Lynch.
MANUELA – (Verdadeira). Que nome lindo! Viu só? Ninguém me conhece tão bem quanto você! Conversando a gente se entende.
5. Sempre mais
(Começa a tocar “Heavy metal do senhor” do Zeca Baleiro. Entra o DIABO, radiante).
DIABO – Nada como um bom diálogo! Pena que a pomba da paz entrou em combustão espontânea. Kabum! Convenções de status social ainda mantêm o casal de equilibristas por um fio. Vocês se encontram para se desejar, entregar, apaixonar, possuir, com a mesma intensidade com que em tempos futuros vão se ressentir, acusar e violentar. Vocês não se tratam como gente, mas sim como alvos. Alvos a conquistar para em seguida combater. Por que assumem papéis que não estão interessados em interpretar? Por que decidiram se emocionar um com o outro? Atribuir valores extremos? Poderiam ter ficado apenas com a diversão do sexo. Às vezes é mais saudável separar as coisas. Com mais inteligência, a alegria teria durado mais tempo. Mas não! Vocês querem sempre mais. Vocês querem a dominação. É aí que vocês se dilaceram! Não é verdade, passarinho? Está me ouvindo? Já compreendi o propósito da inesperada visita. Pois saiba que essas duas almas chegaram aos meus domínios com as próprias pernas. É escolha deles estarem aqui. Estão fugindo do passado. Nada tenho a ver. Portanto, não me atrapalhe mais. Quero me divertir com os meus novos brinquedos. Está me ouvindo? (Desconfiado). Parece que não. Onde está você, anjinho? Não volte aqui ou vou depená-lo. Mostre-se ou desapareça! (Enxerga além). Não está aqui. Fugiu com o meu bonequinho. Aonde pensa que vai, Miguel?
(Blecaute total).
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Parte 2 de 5 da peça ácida O amor segundo o Diabo
De Rafa Lima
3. Mais livres do que estão prontos a aceitar
(Toca “Singin´ in the rain”. O DIABO dança com um guarda-chuva em mãos, parodiando a coreografia do musical).
DIABO – What a glorious feeling! Se continuássemos em breve os dois se tornariam Macbeth e Lady Macbeth, apunhalando-se, envenenando-se, mas não queremos ver isso! Queremos entretenimento de conteúdo que nos faça pensar, mas que seja muito divertido. Certo, baixinhos? Estou excitadíssimo! Não sei por que mas me lembra o dia em que Moisés não conseguiu abrir o mar Vermelho e se enfureceu com o Manda-chuva. Tiveram que construir muitos barcos. Alguns afundaram. Os hebreus escravizados no Egito não sabiam nadar direito. Glub, glub, glub. No fim das contas, o faraó, aquela bichona ressentida, sentiu-se aliviado, ordenou ele: (Imita o faraó). “Leva esse seu povo lá para as bandas dos árabes, prometo que serão vizinhos pacíficos”. Mas o mar Vermelho foi um problemão. Ou vocês acreditaram que um velho com um cajado seguido por uma legião de maltrapilhos separou ao meio um dos maiores mares do planeta? E a credibilidade dos outros deuses marítimos? Poseidon, Iemanjá, Aquaman? Hein? Hein? Nada disso! Naquela época a imprensa ainda não existia e já não era livre. Inventaram cada história. A Bíblia é um tablóide místico! Eu sou o Diabo. Posso me dar ao luxo de dizer o que quiser. Oh, vejam quem se aproxima!
(Entra a MULHER como a BIPOLAR).
DIABO – Vejam como está essa menina. Tudo o que deseja é atenção. (Em falsete de princesa). Me amem, pessoas! Me ame, mundo! Hum! Acabo de pescar uma palavra no ar. Bipolaridade! Vamos lá, cocotinha do sarcasmo. Saia e volte quando eu chamar. (Ela sai). Ah, como é espetacular ser o maior vilão da História. Tem os seus contratempos, é verdade. Há muitos idiotas à espreita. (Em tom intelectual). Você é darwinista ou criacionista? Minha gente, se Deus foi criado pelo homem e o homem evoluiu do macaco, Deus evoluiu do macaco. (Explode num lampejo de eletricidade). Euforia!
(Entra a BIPOLAR eufórica).
BIPOLAR – (A 300 km/h). Você não vai acreditar na festa que eu vou mais tarde. Vai estar todo mundo lá. Comprei um vestido lindo. Muita gente bonita. Mega-evento. Estou na vida para ver e ser vista, ora bolas. Não imagina como penei para encontrar o vestido. É lindo. O DJ da festa é muito, muito, muito, muito bom, só dá festas inesquecíveis. Depois ainda vai ter um pós na casa de uma amiga que mora num apartamento es-pe-ta-cu-lar, você nunca viu coisa igual. Que decoração, que decoração! Mas só vou se não encontrar alguém especial. Não um desses carinhas ridículos que costumam entrar na minha vida, mas um homem de verdade. Que delícia! Tenho que ir me aprontar, daqui a seis horas tem uma pré na casa de um amigo também. Nada pode dar errado na noite de hoje. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada... Nada.
DIABO – Isso aí, nada. Agora, pare, querida. Calma, calma, passou. Agora saia e volte do jeitinho que o Diabo gosta. (Ela sai). Como não se apaixonar por uma criaturinha gostosinha como essa? Logo, vocês verão o homem que coloquei no caminho dela. Volte, minha flor. (Com melancolia debochada). Depressão. (Silêncio. Nada acontece. O DIABO se esgueira). Lindinha, venha! Estamos esperando.
BIPOLAR – (Dos bastidores). Desculpe, eu não vou. Estou muito triste. Aconteceram umas paradas aí.
DIABO – (Para a platéia). Adoro o linguajar carioca. (Para a BIPOLAR). Que paradas?
BIPOLAR – Ah, umas coisas feias que me abalaram muito, muito, muito. Tão horríveis que nem tenho vontade de sair de casa.
DIABO – É mesmo? Que tal vir até aqui e me contar pessoalmente?
BIPOLAR – Eu preciso mesmo?
DIABO – Venha de uma vez e pare de frescura.
BIPOLAR – Desse jeito eu não vou. Estou precisando de acolhimento. Não suporto mais ser maltratada.
DIABO – Está certo, minha vitimazinha. Venha aqui, vou cuidar de você.
(Enfim volta a BIPOLAR, arrastando correntes).
BIPOLAR – (Fantasmagórica). O que você quer de mim?
DIABO – O que houve com você? O que significam essas correntes?
BIPOLAR – São as dores que eu carrego.
DIABO – Ei, Cinderela da angústia, já temos simbolismo suficiente por aqui.
BIPOLAR – São dores que não se desprendem.
DIABO – Sei, sei, o ressentimento pelos homens que conquistou e perdeu, o sentimento de ausência de eventos de maior grandeza na vida, a sensação de que aproveitou mal as oportunidades, ora, o tempo está passando, a incapacidade de reiniciar os dias sem se dividir tanto entre o egoísmo e a culpa, ah, existem tantos sabores de sorvete no mundo.
BIPOLAR – Caramba! Perda, ressentimento, ausência, egoísmo, culpa, você é tão exagerado.
DIABO – Eu?
BIPOLAR – (Grita). Você sim!
DIABO – Calma, minha planta carnívora, solte essas correntes por um tempo, liberte o seu ego nas minhas mãos, porque no programa de assistência emocional do Diabo a vida só melhora! Que entre o escolhido.
(Entra o HOMEM como o BÊBADO, tropeçando chaplinianamente).
BÊBADO – Estou aqui, não precisa empurrar.
DIABO – Vejam que exemplo de homem bem-sucedido. Vocês dois precisam se conhecer.
BÊBADO – Que dois? (Pausa). Ah, está contando comigo.
DIABO – Menino monstro, essa é a princesa mofada.
BÊBADO – Vou enganar, não, seu Belzebu! Mor filezão, hein?
BIPOLAR – Como os homens podem ser tão asquerosos?
DIABO – Alguns minutos juntos e descobrirão que são mais parecidos do que imaginam. Comportem-se mal. (Sai).
BIPOLAR – Não vejo sentido nisso tudo. Não vejo mesmo.
BÊBADO – Que tal uma bebidinha?
BIPOLAR – Eu não bebo.
BÊBADO – Como assim? Essa frase que você disse não faz sentido.
BIPOLAR – Você não tem vergonha de ser um alcoólatra?
BÊBADO – Você não tem vergonha de não ter amigos?
BIPOLAR – O que quer dizer?
BÊBADO – Como espera ter amigos se você não bebe?
BIPOLAR – (Agressiva). Eu tenho vários amigos, pode apostar! Eles só são pessoas ocupadas demais para me encontrar sempre. Pessoas importantes!
BÊBADO – Calma, bonitona, não fique zangada. Não precisa ter vergonha de se sentir sozinha.
BIPOLAR – (Furiosa). Eu não me sinto sozinha!
BÊBADO – Tão bonita. Você é uma belezinha que só quer ser compreendida e amada. O mundo já foi tão injusto com você. Uma alma que só precisa de carinho. Quer um abraço?
(O BÊBADO abre os braços e se direciona à moça. A BIPOLAR hesita).
BIPOLAR – Claro que não quero um abraço seu.
BÊBADO – Estou adorando o nosso encontro.
BIPOLAR – Isso não é um encontro. Jamais ficaria com alguém como você.
BÊBADO – Me dê um motivo para não ficar comigo.
BIPOLAR – Você é um bêbado, não tem onde cair morto, não tem classe, é mal vestido, não fala coisas interessantes, é gratuitamente obsceno e o seu cabelo é desgrenhado.
BÊBADO – Eu pedi apenas um.
BIPOLAR – Por que não some de uma vez?
BÊBADO – Acha de verdade que estou bêbado? É apenas um disfarce. Há muitos anos a bebida já não faz mais efeito.
BIPOLAR – É covarde da mesma forma.
BÊBADO – Você vai partir o meu coração?
BIPOLAR – Não, se você desaparecer da minha frente.
BÊBADO – Você é muito metida. (Para amigos imaginários). Ninguém me segura.
BIPOLAR – Não tem mais ninguém aqui.
BÊBADO – Quem você pensa que é, mofada? Você é tão elitista nas suas intenções, mas aposto que sempre dá mais valor para quem pisa em você e a deixa na falta.
BIPOLAR – Até que enfim você acertou uma. Se as minhas escolhas não fossem tão terríveis, não estaria aqui com a escória.
BÊBADO – Me dê uma chance de conquistá-la.
BIPOLAR – Nem morta.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
BIPOLAR – Pode repetir isso quando eu pedir, por favor?
BÊBADO – Tudo o que você quiser, meu anjinho.
BIPOLAR – Só um minuto. (Ela se retira de cena e fala dos bastidores). Pode repetir agora.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
(Volta a BIPOLAR com um megafone).
BIPOLAR – (Fala ao megafone). Porque você é patético, ridículo, grosseiro, desinteressante, nojento, medíocre, anticlímax, representante perpétuo do que há de mais broxante na humanidade. Você não chega aos meus pés. Não passa de um morto-vivo. Que tal desaparecer de vez, seu vômito?
BÊBADO – (Calmo). De acordo. Pode me emprestar o megafone?
BIPOLAR – Aqui está. É lógico que vai tentar me agredir de volta.
BÊBADO – Não sou a favor da violência. (Sóbrio). Embora esteja com vontade de espancá-la como a uma vagabunda maldosa, vou prestar uma homenagem.
BIPOLAR – Homenagem?
BÊBADO – Como funciona isso?
BIPOLAR – Aperte aqui.
BÊBADO – (Ao megafone). Uma mulher com esse jeitinho tão delicado que tu tens me faz entender quão importante é a separação total de bens.
(Sai o BÊBADO, levando o megafone).
BIPOLAR – Foi embora com o meu bem mais precioso, o megafone. Levou também a minha última expectativa de que algo bom pudesse acontecer. Não agüento mais essa condição. Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude! Como se reconstrói a esperança?
(Começa a tocar “Você é feia” do Rogério Skylab. A BIPOLAR se autoflagela. Entra MIGUEL, a música pára).
MIGUEL – Quer liberdade? Já tentou romper com os padrões cristalizados?
BIPOLAR – Preciso de carinho, só que afasto todos aqueles que cativo.
MIGUEL – Você tem que parar de moldar a sua personalidade a partir dos homens com quem se envolve. Você ainda não sabe quem é. Precisa se descobrir. Mas libertar-se e criar uma identidade não significam abrir mão de se divertir, de trocar, até mesmo de amar as pessoas.
BIPOLAR – Alguém me disse que o amor é uma mentira corporativa. Não sei se acredito.
MIGUEL – O desamor é um veneno para o mundo. Liberte-se do que você perdeu, menina.
BIPOLAR – Busco um sentido, mas os outros não me permitem enxergá-lo.
MIGUEL – Os outros não fazem sentido. Eles só passam a existir quando são vistos como pessoas e não apenas como reflexos dos nossos sonhos e dos nossos medos.
BIPOLAR – Hum. Profundo. O que quer dizer?
MIGUEL – Que uma relação não funciona quando você está beijando somente uma representação de si mesmo.
BIPOLAR – Eu quero ir além, mas existem tantos papéis sociais definidos que às vezes tenho medo de agir de forma diferente e ser rejeitada.
MIGUEL – Viver pode ser muito mais do que consumir alegrias e estocar ressentimentos.
BIPOLAR – Tenho que recolher muitos fragmentos para conseguir criar uma identidade.
MIGUEL – Vale a pena tentar. Enquanto isso, divirta-se. Veja quem está ali. É o homem sensível.
(Entra o HOMEM SENSÍVEL).
HOMEM SENSÍVEL – Olá, tudo certinho com vocês?
MIGUEL – Vocês dois se conhecem?
BIPOLAR – Sim, eu o conheço bem.
MIGUEL – Que bom. Faz bem viver junto a pessoas que expandem nossas idéias. Alegria, alegria! (Sai).
HOMEM SENSÍVEL – Há quanto tempo não nos vemos!
BIPOLAR – Pois é.
HOMEM SENSÍVEL – A gente devia aproveitar uns momentos a sós. Mas há olhos invisíveis apontados para a gente.
BIPOLAR – Sempre uma delícia de paranóia.
HOMEM SENSÍVEL – Estou falando a verdade. A sociedade quer resultados.
BIPOLAR – (Ri com prazer redescoberto). Só agora percebi que estava com muita saudade de você, sabia? Você é o máximo, rapaz. Inteligente, divertido, me faz rir, é a companhia mais agradável que tive nos últimos tempos, sem falar no seu conhecimento das coisas, tantas referências, eu respiro o mundo quando estou ao seu lado. Você entende bastante da alma feminina.
(Ele acaricia o rosto dela e cria-se um clima sensual entre os dois).
HOMEM SENSÍVEL – Sabe que eu sou louco por você? Tenho um megatesão reprimido.
BIPOLAR – Também reprimo o tesão, mas não vou ficar falando essas coisas, né? Fora isso, só tem um problema.
HOMEM SENSÍVEL – Qual?
BIPOLAR – Gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto. A BIPOLAR se desespera e tenta reanimá-lo).
BIPOLAR – O que houve? Fale comigo. Responda. Não está respirando. Fale comigo. Não me abandone. Eu não posso viver sem você, por favor, não me abandone. Você é muito especial para mim. Só não me entrego porque você é bom demais, está sempre à disposição, sempre ao meu lado, e assim não serve. Assim não dá para idealizar. Por favor, responda.
(O HOMEM SENSÍVEL se recupera).
BIPOLAR – Oh, você está bem! Que bom.
HOMEM SENSÍVEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Você apagou completamente.
HOMEM SENSÍVEL – Não completamente. Eu ouvi o que você disse.
BIPOLAR – Que safado! Só falei aquilo porque estava desesperada.
HOMEM SENSÍVEL – Vem cá, bonita. (Ele a enlaça). Não tenha medo da alegria que quero dar a você.
BIPOLAR – Só tem uma coisa.
HOMEM SENSÍVEL – O quê?
BIPOLAR – Ainda gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto novamente).
BIPOLAR – De novo não! Alguém me ajude!
(Volta MIGUEL).
MIGUEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Ele morre toda vez em que digo a verdade.
MIGUEL – Geralmente é assim. Fique tranqüila, ele vai se recuperar. Vamos, rapaz, coragem, bola pra frente.
(O HOMEM SENSÍVEL se levanta).
HOMEM SENSÍVEL – Caramba! Parece que passou um caminhão por cima de mim. (Furioso). Pro inferno com os sentimentos!
MIGUEL – Não diga isso, pirralho! Vocês dois não se cansam de ser joguetes na mão do destino?
BIPOLAR – Demais.
HOMEM SENSÍVEL – Pois é.
MIGUEL – É hora de reagir. Tomar as rédeas da situação. Criem os seus caminhos. Inventem uma identidade própria, só como referência. Nomes, histórias, memórias. Dividam-se com quem lhes oferecer algo genuíno. Não acreditem mais em anjos e demônios. Os sentimentos humanos estão guardados além do bem e do mal.
DIABO – (Dos bastidores). O que está fazendo, passarinho?
(Entra o DIABO).
DIABO – Como ousa manipular os meus brinquedos? Fora daqui, sua duas-caras. Para longe de mim, seu frangote.
(HOMEM e MULHER fogem para fora de cena).
DIABO – Será que não posso me divertir em paz com as dores humanas?
MIGUEL – Você não é mais tão poderoso quanto pensa.
DIABO – O que quer dizer com isso?
MIGUEL – Que a humanidade nos ultrapassou. Que basta ao homem e à mulher reconhecer que são responsáveis pela própria doença para ter início a libertação. Basta que não levem as próprias dores tão a sério para que o seu controle desapareça, demônio. Não serão mais suas marionetes. Você só os controla agora porque querem ser grandes através do sofrimento.
DIABO – Balela! Homem e mulher não aceitarão conviver com a dor alheia. Eles precisam nomear culpados para se sentir seguros. O pesar, a culpa e todo o mal precisam vir de fora, vir do outro. Lembra da bichinha do Sartre? Sim, passarinho, no século 21 cada vez mais ‘o inferno são os outros’, n’est pas? Tudo escondido sob um sorriso de argamassa social.
MIGUEL – Você se ilude. Eles são mais livres do que estão prontos a aceitar.
DIABO – Quer ver que não? (Percebe que MIGUEL não está mais em cena). Escondeu-se, passarinho? Sei que me observa. Pois veja isso!
(Entram HOMEM e MULHER como LOS FABULOSOS TEQUILAS).
DIABO – Conheçam Los fabulosos Tequilas. Não passam de uns fantoches de suas feridas. (Em falso tom solene). Nas relações a dois nada melhor do que o bom diálogo. Ação! (Desaparece).
Continua...
O sentimento não pode parar!
Pague pelos anúncios e tenha bons frutos no amor! (Ou aprenda fórmulas de ironia)
Veja filmes do Todd Sollondz (comece por Felicidade, a obra mais sarcástica do cinema), leia Salman Rushdie, ouça Cartola, faça sexo com cuidados básicos, volte sempre ao Fantástico mundo do Rafa!
3. Mais livres do que estão prontos a aceitar
(Toca “Singin´ in the rain”. O DIABO dança com um guarda-chuva em mãos, parodiando a coreografia do musical).
DIABO – What a glorious feeling! Se continuássemos em breve os dois se tornariam Macbeth e Lady Macbeth, apunhalando-se, envenenando-se, mas não queremos ver isso! Queremos entretenimento de conteúdo que nos faça pensar, mas que seja muito divertido. Certo, baixinhos? Estou excitadíssimo! Não sei por que mas me lembra o dia em que Moisés não conseguiu abrir o mar Vermelho e se enfureceu com o Manda-chuva. Tiveram que construir muitos barcos. Alguns afundaram. Os hebreus escravizados no Egito não sabiam nadar direito. Glub, glub, glub. No fim das contas, o faraó, aquela bichona ressentida, sentiu-se aliviado, ordenou ele: (Imita o faraó). “Leva esse seu povo lá para as bandas dos árabes, prometo que serão vizinhos pacíficos”. Mas o mar Vermelho foi um problemão. Ou vocês acreditaram que um velho com um cajado seguido por uma legião de maltrapilhos separou ao meio um dos maiores mares do planeta? E a credibilidade dos outros deuses marítimos? Poseidon, Iemanjá, Aquaman? Hein? Hein? Nada disso! Naquela época a imprensa ainda não existia e já não era livre. Inventaram cada história. A Bíblia é um tablóide místico! Eu sou o Diabo. Posso me dar ao luxo de dizer o que quiser. Oh, vejam quem se aproxima!
(Entra a MULHER como a BIPOLAR).
DIABO – Vejam como está essa menina. Tudo o que deseja é atenção. (Em falsete de princesa). Me amem, pessoas! Me ame, mundo! Hum! Acabo de pescar uma palavra no ar. Bipolaridade! Vamos lá, cocotinha do sarcasmo. Saia e volte quando eu chamar. (Ela sai). Ah, como é espetacular ser o maior vilão da História. Tem os seus contratempos, é verdade. Há muitos idiotas à espreita. (Em tom intelectual). Você é darwinista ou criacionista? Minha gente, se Deus foi criado pelo homem e o homem evoluiu do macaco, Deus evoluiu do macaco. (Explode num lampejo de eletricidade). Euforia!
(Entra a BIPOLAR eufórica).
BIPOLAR – (A 300 km/h). Você não vai acreditar na festa que eu vou mais tarde. Vai estar todo mundo lá. Comprei um vestido lindo. Muita gente bonita. Mega-evento. Estou na vida para ver e ser vista, ora bolas. Não imagina como penei para encontrar o vestido. É lindo. O DJ da festa é muito, muito, muito, muito bom, só dá festas inesquecíveis. Depois ainda vai ter um pós na casa de uma amiga que mora num apartamento es-pe-ta-cu-lar, você nunca viu coisa igual. Que decoração, que decoração! Mas só vou se não encontrar alguém especial. Não um desses carinhas ridículos que costumam entrar na minha vida, mas um homem de verdade. Que delícia! Tenho que ir me aprontar, daqui a seis horas tem uma pré na casa de um amigo também. Nada pode dar errado na noite de hoje. Nada. Nada. Nada. Nada. Nada... Nada.
DIABO – Isso aí, nada. Agora, pare, querida. Calma, calma, passou. Agora saia e volte do jeitinho que o Diabo gosta. (Ela sai). Como não se apaixonar por uma criaturinha gostosinha como essa? Logo, vocês verão o homem que coloquei no caminho dela. Volte, minha flor. (Com melancolia debochada). Depressão. (Silêncio. Nada acontece. O DIABO se esgueira). Lindinha, venha! Estamos esperando.
BIPOLAR – (Dos bastidores). Desculpe, eu não vou. Estou muito triste. Aconteceram umas paradas aí.
DIABO – (Para a platéia). Adoro o linguajar carioca. (Para a BIPOLAR). Que paradas?
BIPOLAR – Ah, umas coisas feias que me abalaram muito, muito, muito. Tão horríveis que nem tenho vontade de sair de casa.
DIABO – É mesmo? Que tal vir até aqui e me contar pessoalmente?
BIPOLAR – Eu preciso mesmo?
DIABO – Venha de uma vez e pare de frescura.
BIPOLAR – Desse jeito eu não vou. Estou precisando de acolhimento. Não suporto mais ser maltratada.
DIABO – Está certo, minha vitimazinha. Venha aqui, vou cuidar de você.
(Enfim volta a BIPOLAR, arrastando correntes).
BIPOLAR – (Fantasmagórica). O que você quer de mim?
DIABO – O que houve com você? O que significam essas correntes?
BIPOLAR – São as dores que eu carrego.
DIABO – Ei, Cinderela da angústia, já temos simbolismo suficiente por aqui.
BIPOLAR – São dores que não se desprendem.
DIABO – Sei, sei, o ressentimento pelos homens que conquistou e perdeu, o sentimento de ausência de eventos de maior grandeza na vida, a sensação de que aproveitou mal as oportunidades, ora, o tempo está passando, a incapacidade de reiniciar os dias sem se dividir tanto entre o egoísmo e a culpa, ah, existem tantos sabores de sorvete no mundo.
BIPOLAR – Caramba! Perda, ressentimento, ausência, egoísmo, culpa, você é tão exagerado.
DIABO – Eu?
BIPOLAR – (Grita). Você sim!
DIABO – Calma, minha planta carnívora, solte essas correntes por um tempo, liberte o seu ego nas minhas mãos, porque no programa de assistência emocional do Diabo a vida só melhora! Que entre o escolhido.
(Entra o HOMEM como o BÊBADO, tropeçando chaplinianamente).
BÊBADO – Estou aqui, não precisa empurrar.
DIABO – Vejam que exemplo de homem bem-sucedido. Vocês dois precisam se conhecer.
BÊBADO – Que dois? (Pausa). Ah, está contando comigo.
DIABO – Menino monstro, essa é a princesa mofada.
BÊBADO – Vou enganar, não, seu Belzebu! Mor filezão, hein?
BIPOLAR – Como os homens podem ser tão asquerosos?
DIABO – Alguns minutos juntos e descobrirão que são mais parecidos do que imaginam. Comportem-se mal. (Sai).
BIPOLAR – Não vejo sentido nisso tudo. Não vejo mesmo.
BÊBADO – Que tal uma bebidinha?
BIPOLAR – Eu não bebo.
BÊBADO – Como assim? Essa frase que você disse não faz sentido.
BIPOLAR – Você não tem vergonha de ser um alcoólatra?
BÊBADO – Você não tem vergonha de não ter amigos?
BIPOLAR – O que quer dizer?
BÊBADO – Como espera ter amigos se você não bebe?
BIPOLAR – (Agressiva). Eu tenho vários amigos, pode apostar! Eles só são pessoas ocupadas demais para me encontrar sempre. Pessoas importantes!
BÊBADO – Calma, bonitona, não fique zangada. Não precisa ter vergonha de se sentir sozinha.
BIPOLAR – (Furiosa). Eu não me sinto sozinha!
BÊBADO – Tão bonita. Você é uma belezinha que só quer ser compreendida e amada. O mundo já foi tão injusto com você. Uma alma que só precisa de carinho. Quer um abraço?
(O BÊBADO abre os braços e se direciona à moça. A BIPOLAR hesita).
BIPOLAR – Claro que não quero um abraço seu.
BÊBADO – Estou adorando o nosso encontro.
BIPOLAR – Isso não é um encontro. Jamais ficaria com alguém como você.
BÊBADO – Me dê um motivo para não ficar comigo.
BIPOLAR – Você é um bêbado, não tem onde cair morto, não tem classe, é mal vestido, não fala coisas interessantes, é gratuitamente obsceno e o seu cabelo é desgrenhado.
BÊBADO – Eu pedi apenas um.
BIPOLAR – Por que não some de uma vez?
BÊBADO – Acha de verdade que estou bêbado? É apenas um disfarce. Há muitos anos a bebida já não faz mais efeito.
BIPOLAR – É covarde da mesma forma.
BÊBADO – Você vai partir o meu coração?
BIPOLAR – Não, se você desaparecer da minha frente.
BÊBADO – Você é muito metida. (Para amigos imaginários). Ninguém me segura.
BIPOLAR – Não tem mais ninguém aqui.
BÊBADO – Quem você pensa que é, mofada? Você é tão elitista nas suas intenções, mas aposto que sempre dá mais valor para quem pisa em você e a deixa na falta.
BIPOLAR – Até que enfim você acertou uma. Se as minhas escolhas não fossem tão terríveis, não estaria aqui com a escória.
BÊBADO – Me dê uma chance de conquistá-la.
BIPOLAR – Nem morta.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
BIPOLAR – Pode repetir isso quando eu pedir, por favor?
BÊBADO – Tudo o que você quiser, meu anjinho.
BIPOLAR – Só um minuto. (Ela se retira de cena e fala dos bastidores). Pode repetir agora.
BÊBADO – Por que você não me dá uma chance de ficar com você?
(Volta a BIPOLAR com um megafone).
BIPOLAR – (Fala ao megafone). Porque você é patético, ridículo, grosseiro, desinteressante, nojento, medíocre, anticlímax, representante perpétuo do que há de mais broxante na humanidade. Você não chega aos meus pés. Não passa de um morto-vivo. Que tal desaparecer de vez, seu vômito?
BÊBADO – (Calmo). De acordo. Pode me emprestar o megafone?
BIPOLAR – Aqui está. É lógico que vai tentar me agredir de volta.
BÊBADO – Não sou a favor da violência. (Sóbrio). Embora esteja com vontade de espancá-la como a uma vagabunda maldosa, vou prestar uma homenagem.
BIPOLAR – Homenagem?
BÊBADO – Como funciona isso?
BIPOLAR – Aperte aqui.
BÊBADO – (Ao megafone). Uma mulher com esse jeitinho tão delicado que tu tens me faz entender quão importante é a separação total de bens.
(Sai o BÊBADO, levando o megafone).
BIPOLAR – Foi embora com o meu bem mais precioso, o megafone. Levou também a minha última expectativa de que algo bom pudesse acontecer. Não agüento mais essa condição. Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude! Como se reconstrói a esperança?
(Começa a tocar “Você é feia” do Rogério Skylab. A BIPOLAR se autoflagela. Entra MIGUEL, a música pára).
MIGUEL – Quer liberdade? Já tentou romper com os padrões cristalizados?
BIPOLAR – Preciso de carinho, só que afasto todos aqueles que cativo.
MIGUEL – Você tem que parar de moldar a sua personalidade a partir dos homens com quem se envolve. Você ainda não sabe quem é. Precisa se descobrir. Mas libertar-se e criar uma identidade não significam abrir mão de se divertir, de trocar, até mesmo de amar as pessoas.
BIPOLAR – Alguém me disse que o amor é uma mentira corporativa. Não sei se acredito.
MIGUEL – O desamor é um veneno para o mundo. Liberte-se do que você perdeu, menina.
BIPOLAR – Busco um sentido, mas os outros não me permitem enxergá-lo.
MIGUEL – Os outros não fazem sentido. Eles só passam a existir quando são vistos como pessoas e não apenas como reflexos dos nossos sonhos e dos nossos medos.
BIPOLAR – Hum. Profundo. O que quer dizer?
MIGUEL – Que uma relação não funciona quando você está beijando somente uma representação de si mesmo.
BIPOLAR – Eu quero ir além, mas existem tantos papéis sociais definidos que às vezes tenho medo de agir de forma diferente e ser rejeitada.
MIGUEL – Viver pode ser muito mais do que consumir alegrias e estocar ressentimentos.
BIPOLAR – Tenho que recolher muitos fragmentos para conseguir criar uma identidade.
MIGUEL – Vale a pena tentar. Enquanto isso, divirta-se. Veja quem está ali. É o homem sensível.
(Entra o HOMEM SENSÍVEL).
HOMEM SENSÍVEL – Olá, tudo certinho com vocês?
MIGUEL – Vocês dois se conhecem?
BIPOLAR – Sim, eu o conheço bem.
MIGUEL – Que bom. Faz bem viver junto a pessoas que expandem nossas idéias. Alegria, alegria! (Sai).
HOMEM SENSÍVEL – Há quanto tempo não nos vemos!
BIPOLAR – Pois é.
HOMEM SENSÍVEL – A gente devia aproveitar uns momentos a sós. Mas há olhos invisíveis apontados para a gente.
BIPOLAR – Sempre uma delícia de paranóia.
HOMEM SENSÍVEL – Estou falando a verdade. A sociedade quer resultados.
BIPOLAR – (Ri com prazer redescoberto). Só agora percebi que estava com muita saudade de você, sabia? Você é o máximo, rapaz. Inteligente, divertido, me faz rir, é a companhia mais agradável que tive nos últimos tempos, sem falar no seu conhecimento das coisas, tantas referências, eu respiro o mundo quando estou ao seu lado. Você entende bastante da alma feminina.
(Ele acaricia o rosto dela e cria-se um clima sensual entre os dois).
HOMEM SENSÍVEL – Sabe que eu sou louco por você? Tenho um megatesão reprimido.
BIPOLAR – Também reprimo o tesão, mas não vou ficar falando essas coisas, né? Fora isso, só tem um problema.
HOMEM SENSÍVEL – Qual?
BIPOLAR – Gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto. A BIPOLAR se desespera e tenta reanimá-lo).
BIPOLAR – O que houve? Fale comigo. Responda. Não está respirando. Fale comigo. Não me abandone. Eu não posso viver sem você, por favor, não me abandone. Você é muito especial para mim. Só não me entrego porque você é bom demais, está sempre à disposição, sempre ao meu lado, e assim não serve. Assim não dá para idealizar. Por favor, responda.
(O HOMEM SENSÍVEL se recupera).
BIPOLAR – Oh, você está bem! Que bom.
HOMEM SENSÍVEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Você apagou completamente.
HOMEM SENSÍVEL – Não completamente. Eu ouvi o que você disse.
BIPOLAR – Que safado! Só falei aquilo porque estava desesperada.
HOMEM SENSÍVEL – Vem cá, bonita. (Ele a enlaça). Não tenha medo da alegria que quero dar a você.
BIPOLAR – Só tem uma coisa.
HOMEM SENSÍVEL – O quê?
BIPOLAR – Ainda gosto de você como amigo!
(Som de metralhadora. O HOMEM SENSÍVEL é fuzilado e cai morto novamente).
BIPOLAR – De novo não! Alguém me ajude!
(Volta MIGUEL).
MIGUEL – O que aconteceu?
BIPOLAR – Ele morre toda vez em que digo a verdade.
MIGUEL – Geralmente é assim. Fique tranqüila, ele vai se recuperar. Vamos, rapaz, coragem, bola pra frente.
(O HOMEM SENSÍVEL se levanta).
HOMEM SENSÍVEL – Caramba! Parece que passou um caminhão por cima de mim. (Furioso). Pro inferno com os sentimentos!
MIGUEL – Não diga isso, pirralho! Vocês dois não se cansam de ser joguetes na mão do destino?
BIPOLAR – Demais.
HOMEM SENSÍVEL – Pois é.
MIGUEL – É hora de reagir. Tomar as rédeas da situação. Criem os seus caminhos. Inventem uma identidade própria, só como referência. Nomes, histórias, memórias. Dividam-se com quem lhes oferecer algo genuíno. Não acreditem mais em anjos e demônios. Os sentimentos humanos estão guardados além do bem e do mal.
DIABO – (Dos bastidores). O que está fazendo, passarinho?
(Entra o DIABO).
DIABO – Como ousa manipular os meus brinquedos? Fora daqui, sua duas-caras. Para longe de mim, seu frangote.
(HOMEM e MULHER fogem para fora de cena).
DIABO – Será que não posso me divertir em paz com as dores humanas?
MIGUEL – Você não é mais tão poderoso quanto pensa.
DIABO – O que quer dizer com isso?
MIGUEL – Que a humanidade nos ultrapassou. Que basta ao homem e à mulher reconhecer que são responsáveis pela própria doença para ter início a libertação. Basta que não levem as próprias dores tão a sério para que o seu controle desapareça, demônio. Não serão mais suas marionetes. Você só os controla agora porque querem ser grandes através do sofrimento.
DIABO – Balela! Homem e mulher não aceitarão conviver com a dor alheia. Eles precisam nomear culpados para se sentir seguros. O pesar, a culpa e todo o mal precisam vir de fora, vir do outro. Lembra da bichinha do Sartre? Sim, passarinho, no século 21 cada vez mais ‘o inferno são os outros’, n’est pas? Tudo escondido sob um sorriso de argamassa social.
MIGUEL – Você se ilude. Eles são mais livres do que estão prontos a aceitar.
DIABO – Quer ver que não? (Percebe que MIGUEL não está mais em cena). Escondeu-se, passarinho? Sei que me observa. Pois veja isso!
(Entram HOMEM e MULHER como LOS FABULOSOS TEQUILAS).
DIABO – Conheçam Los fabulosos Tequilas. Não passam de uns fantoches de suas feridas. (Em falso tom solene). Nas relações a dois nada melhor do que o bom diálogo. Ação! (Desaparece).
Continua...
O sentimento não pode parar!
Pague pelos anúncios e tenha bons frutos no amor! (Ou aprenda fórmulas de ironia)
Veja filmes do Todd Sollondz (comece por Felicidade, a obra mais sarcástica do cinema), leia Salman Rushdie, ouça Cartola, faça sexo com cuidados básicos, volte sempre ao Fantástico mundo do Rafa!
Parte 1 de 5 da peça ácida O amor segundo o Diabo
De Rafa Lima
Personagens
O DIABO
O HOMEM
A MULHER
A ANJA
1. O laboratório existencial do Diabo
(Toca a música de faroeste de Ennio Morricone, tema de “The good, the bad and the ugly”. Em cada lateral do palco surgem o
HOMEM e a MULHER em posição de duelo. No meio, à posição de juiz, aparece O DIABO).
DIABO – (Em tom cerimonial). Estamos aqui reunidos hoje para fundir essas almas na santidade do casamento. (Solta um som primitivo de prazer, como se a alma salivasse). Se alguém sabe de algo que possa impedir essa união que cale a boca! Ou cale-se para sempre! Boa noite, eu sou o Diabo. Creio que todos aqui conhecem a minha obra. Buuuuuu! Buuuuuu! Seis, seis, seis, seiscentos e sessenta e seis, sim, senhoras e senhoras, sou eu, o maior vilão da História. Mas não temam! Estou de férias. Quero apenas me divertir. Pensam que é fácil engendrar uma crise econômica mundial? Aconselhar presidentes, senadores e deputados? Apoiar partidos de extrema-direita? Desenvolver táticas de guerrilha rebelde? Inspirar grupos radicais religiosos? Escrever músicas pop? Também preciso de descanso. Por isso, escolhi um tema para incendiar os corações. Eu estou aqui para inspirá-los. Para desafiá-los diante da verdade que guardam em silêncio em suas mirabolantes cabecinhas. Para provar a vocês que o ser humano não se envolve afetivamente por amor. O que vocês fazem é projetar o próprio ego na idealização que fazem do outro para se auto-afirmar. Vocês precisam se auto-afirmar o tempo todo diante do mundo e do espelho. Já o amor é algo para que a maioria de vocês não deseja estar preparada. (Com sarcasmo). Ohhhhh! Mas que surpresa! Quantas vezes já tentaram me convencer de que amar é oferecer? É dividir parte da própria alma com uma pessoa sem desejar nada em troca! É ver alguém crescer a partir daquilo que você dá! Mas estamos interessados nas teorias idealistas de JC? Inclua no pacote aquele papo da outra face. Quem não reagiria? Vocês querem apanhar mais da vida? É claro que não! Há mais de 2000 mil anos JC já estava ultrapassado. A minha relação com a turma angelical se constitui de um sadomasoquismo espiritual. Gosto de dar uns tapinhas no além. As criaturas divinas se orgulham de suportar o sofrimento, bate, elas me dizem. Eu bato, mas depois elas me acusam. Vem daí a nossa batalha. Eu dou o que elas pedem, elas me apontam dedos acusatórios e moralistas. Só que o tempo passa. Estamos no Século 21, é a era do indivíduo digital. Agora vocês são seres instantâneos, pop, pop, pop, ratinhos emocionais na gaiola do coração do dissimulado criador. Bem-vindos, sonhadores, ao laboratório existencial do Diabo.
HOMEM – Você vem sempre aqui?
MULHER – Ai, você é tão machista e previsível. (Pausa). Não é sempre, mas às vezes eu gosto disso, sabia?
DIABO – (Deliciando-se). Como são repugnantes! Por que não aceitam de uma vez? O amor é singelo demais para a humanidade. Pensam que estou sendo irônico? Sou muito sincero quando desejo. Vocês querem o conflito! Vocês querem uma falsa causa pela qual sofrer para fingir que são grandes. Vocês querem culpas, neuroses, ressentimentos, hostilidade e corações dilacerados como substitutos à incapacidade de amar alguém que não a si próprios. Mas quem sou eu para dar sermão? Não percam tempo com o pensamento, senão daqui a pouco vocês vão querer voltar a ler livros. E daí vão querer fazer escolhas baseadas em referenciais pessoais. Já pensaram no caos que vai ser? Nada disso! Rejeitem os livros! As minhas palavras sobre os sentimentos são só, tipo assim, um toque de amigo. Acreditem em mim, o amor é singelo demais para a humanidade.
UMA VOZ FEMININA NOS BASTIDORES – O que você sabe sobre o amor, demônio?
DIABO – Quem está aí? (Silêncio). Quem está aí? Mostre-se! (Com voz raivosa). Pelas leis do direito universal eu tenho o poder de fazer com que se mostre, intruso! Você está no meu território. Mostre-se!
(Entra a ANJA que se posta à frente do DIABO, dando as costas para a platéia).
DIABO – Maldição! Homem e mulher, saiam e retornem apenas ao meu chamado.
(Saem HOMEM e MULHER).
ANJA – Eles não têm nomes?
DIABO – O quê?
ANJA – O homem e a mulher não têm nomes? Identidades dão impressão de sentido aos seres humanos.
DIABO – Reconfigurar!
(DIABO e ANJA se movem como se o olhar sobre a cena girasse de ângulo, assumindo a posição do duelo).
DIABO – Onde estão as suas asas, fedelho?
ANJA – Temos novas tecnologias.
DIABO – Qual dos três é você?
ANJA – Depois de tanto tempo, ainda não diferencia os nossos olhares?
DIABO – Não tem a fúria autodestrutiva do Gabriel, nem a arrogância metida a superior do Rafael, só pode ser o ha, ha, ha, grande negociador Miguel. Miguel na pele de mulher. O que faz aqui, arcanjo? Está invadindo o meu território.
MIGUEL – Vim acompanhar a experiência.
DIABO – Não tem direito sobre essas almas, passarinho. Sabe bem que não pode interferir nos meus domínios.
MIGUEL – Não tenho poderes sobre essas pessoas. Estou aqui para garantir o bem-estar de quem está ao nosso redor.
(O DIABO observa e encara em silêncio a platéia por alguns segundos).
DIABO – Eles gostam mais de mim, arcanjo. Você é quadrado demais, padronizado e politicamente correto. Estou de férias e vou me divertir em mostrar que o estilo de vida que eles levam nada se assemelha ao ideal que fingem defender.
MIGUEL – Eu acredito no amor humano. (Estala os dedos. Toca “You´re my all, my last, my everything” cantada por Barry White). Os românticos são bem mais estimulantes do que parecem.
DIABO – Desde quando os arcanjos fazem uso da ironia?
MIGUEL – Desde que o Diabo começou a falar de amor.
DIABO – Não interfira, passarinho.
MIGUEL – Não dê motivo, mula-sem-cabeça.
DIABO – O seu exército é maior, mas estamos no meu território.
MIGUEL – Queremos paz. Você é quem adora incitar israelenses e palestinos.
DIABO – Siga o seu caminho.
MIGUEL – Faça-me rir. (Sai).
DIABO – Agora que o passarinho arrogante fugiu da boca da serpente podemos continuar. Essa noite homem e mulher serão muitos, serão eternos. Que ecoem as trombetas, o circo dos amores chegou! (Toca o refrão de “Highway to hell” do AC/DC).
2. Rei e Rainha
(Entram o HOMEM, com uma coroa de louros na cabeça, e a MULHER com asas de fada, cada um ocupando um lado do palco).
HOMEM – Psiu.
(A MULHER faz que não é com ela).
HOMEM – Psiu.
MULHER – É comigo?
HOMEM – Sim.
MULHER – Vai ter que melhorar a sua fala, campeão.
HOMEM – Boa noite, ninfa.
(Ela o mede com o olhar).
MULHER – Quem é você, hein?
HOMEM – Eu sou rei.
MULHER – Rei?
HOMEM – Possuo palácio, guarda pessoal, advogados e o novo modelo de Nintendo.
MULHER – Que exibido! Tem alguma cultura?
HOMEM – Cultura? Por Netuno, o que seria isso?
MULHER – Arte, antropologia, autoconhecimento, os maiores bens espirituais humanos. Misture um pouquinho de cada que vira cultura.
HOMEM – Você é do tipo cabeça, é?
MULHER – Não tente me rotular, sou inclassificável.
HOMEM – É mesmo? Pode me dar um exemplo da cultura que carrega?
MULHER – Você vai rir.
HOMEM – Juro que não.
MULHER – Shakespeare, Nietzsche, samba de raiz e “A pequena sereia”.
HOMEM – Hum, já ouvi falar.
MULHER – Ouviu nada! Você está me enganando.
HOMEM – Eu não enganaria você, ninfa.
MULHER – Eu não sou ninfa. Sou rainha.
HOMEM – Rainha?
(O REI corre em direção à RAINHA e tromba com um escudo invisível no meio do palco que o arremessa para trás).
REI – O que é isso? Por que está se protegendo de mim? Para que tanta resistência?
RAINHA – De onde você vem?
REI – Atenas, Roma e mais recentemente bolsa de valores de Nova Iorque.
(Ela ri).
RAINHA – Você é divertido. Você se acha!
REI – Eu me acho e agora achei você.
RAINHA – Espertinho! Eu não quis dizer isso.
REI – Eu sei.
RAINHA – Se você é mesmo rei e passou por tantos lugares, como não tem uma bagagem cultural?
REI – Lá vem você de novo com esse papo. Eu me amarro no Robert De Niro. Serve?
RAINHA – Hum! De Niro, um clássico.
REI – Sou clássico.
RAINHA – É mesmo? Qual é o sentido da vida?
REI – Batalhas épicas e donzelas nuas de graça.
RAINHA – Típica resposta de macho dominador. (Pausa). Gostei disso. O macho alfa está na moda de novo, será a tendência do próximo verão.
REI – (À parte). Do que diabos ela está falando? (Para ela). O que mais você espera de um homem, rainha?
RAINHA – Nada demais. Charme, inteligência, sensibilidade, autoconfiança, cumplicidade, sinceridade e pegada... ah, e deve gostar dos Beatles. Só isso.
REI – Caramba!
RAINHA – Onde fica o seu reino?
REI – No capital flutuante e o seu?
RAINHA – Entre Copacabana e o Leblon.
(De repente, o REI sorri).
RAINHA – O que foi?
REI – Adoraria beijar uma das suas orelhas.
RAINHA – Como se atreve?
REI – Sou um rei atrevido.
RAINHA – Aonde espera chegar com uma atitude dessas?
REI – A um novo paraíso. Me deixa entrar na sua vida.
(Silêncio).
REI – Me deixa entrar na sua vida e virar você do avesso.
(Novo silêncio).
RAINHA – O que está esperando?
REI – O que você disse?
RAINHA – O que está esperando para se atrever? Eu não vou mais ficar fazendo jogo duro, não serve de nada. Você não vai ser idiota de me dar menos valor porque eu também estou a fim e quero me entregar, vai?
(O REI se espanta, mas rapidamente se liga e corre para abraçá-la. Blecaute, começa a tocar “Let´s get it on”, na voz de Marvin Gaye. Depois de um tempo no escuro, a música é cortada. Foco no DIABO).
DIABO – Que delícia é a conquista. Os primeiros meses, um paraíso. Passo a passo surrupiando a alma do outro. Pouco a pouco enroscando a teia de projeções. Vamos acelerar um pouco o tempo e a ação. Quero paixão, quero loucura, não percam a chance, não se arrependam depois! (Desaparece).
RAINHA – Milorde, adorei a nossa noite, o jantar, o filme, o nosso momento juntinhos. Nunca senti isso antes, você é todo gostoso.
REI – Maileide, você é linda. Tão inteligente. Aprendi tanto nesses meses. Livros, filmes, músicas. (Pausa). Quem diria que um guardanapo seria tão útil?
(Mudam de posição).
RAINHA – (Com doçura) Como é o seu nome secreto?
REI – Menino. E o seu?
RAINHA – Menina.
REI – Você paga imposto por ser tão bonita assim?
RAINHA – (Ela ri). Eu amo você.
REI – (Ele a observa surpreso). Eu também.
(Afastam-se).
RAINHA – Onde você estava?
REI – Na caçada à corça do pé de bronze.
RAINHA – Podia ter me avisado.
REI – Sim, sim. A caçada foi ótima.
RAINHA – Você me ouviu?
REI – Sim, sim. A caçada foi ótima.
(Afastam-se mais).
RAINHA – Estou com aquela nova doença. Chama-se gripe.
REI – Cruzes! Eu vou à confraria me embebedar com os meus irmãos em armas. Boa noite.
(Afastam-se um pouco).
RAINHA – Tive febre à noite inteira. Me dá colo?
REI – Hoje não dá, tenho várias reuniões e estou de ressaca. Que tal amanhã?
(Afastam-se mais ainda).
RAINHA – O que você está pensando?
REI – Nada.
RAINHA – Nada?
REI – Nada.
RAINHA – Está acontecendo algo com você?
REI – (Para a platéia, revelando o que realmente pensa). Sim, estou estagnado com o nosso cotidiano. Sim, tenho a impressão de que por melhor que eu seja você nunca está satisfeita como era no início. Sim, eu penso em outras mulheres. (Volta para ela). Nada.
RAINHA – Nada?
REI – Nada. Deveria?
(Afastam-se a extremos como lá no início da cena).
RAINHA – Vamos ao cinema ou à execução de cristãos que você tanto gosta? Ouvi dizer que chegaram novos leões.
REI – Cansado.
RAINHA – Quer comer algo? Podemos pedir para entregarem um javali.
REI – Não, você faz questão?
RAINHA – Eu não como mais. Estou ficando acima do meu peso.
REI – Então, por que perguntou?
RAINHA –Apenas me preocupei com você.
REI – Para que se preocupar?
(Silêncio).
RAINHA – Me abraça?
REI – Daqui a pouquinho, deixa acabar o documentário sobre os dragões de Komodo.
(A RAINHA corre em direção ao REI e tromba com um escudo invisível no meio do palco que a arremessa para trás).
RAINHA – Por que você está se protegendo de mim?
REI – Por Zeus, mulher, eu não estou me protegendo.
RAINHA – O que houve com você?
REI – Nada.
RAINHA – NADA acontece com você.
REI – Calma, calma, foguentinha. Está histérica!
RAINHA – E o nosso amor?
REI – Oi?
RAINHA – E o nosso amor?
REI – Sei lá.
RAINHA – Você me ama?
REI – Acho que sim.
RAINHA – ACHA?
REI – Acho.
RAINHA –Você se acha! Isso sim!
REI – Sim, eu me acho.
RAINHA – Acabou.
REI – Já vou tarde.
(O REI se afasta. Fica parado de costas por alguns segundos e retorna, encontram-se no meio do palco).
REI – Olá, quanto tempo!
RAINHA – O que está fazendo aqui?
REI – Vim ver você.
RAINHA – Acha que pode voltar quando quiser?
REI – Apenas senti saudades.
RAINHA – Você só dá valor quando perde, não sabe viver na alegria.
REI – Você não sabe o que quer, mulher. Se estou longe, reclama, se estou perto, reclama.
RAINHA – Agora não quero nada.
(A RAINHA se afasta. Fica parada de costas por alguns segundos e retorna, encontram-se no meio do palco).
RAINHA – Não sei ao certo o que vim fazer aqui.
REI – Quer transar?
RAINHA – Você só pensa nisso.
REI – Parece que é a única coisa que vale a pena pensar.
RAINHA – Que tal pensar no futuro?
REI – Eu penso.
RAINHA – E nos nossos filhos?
REI – Que filhos? Nós não temos filhos.
RAINHA – Mas podemos ter, só que você prefere ficar se divertindo com essas pistoleiras.
REI – Preciso de um uísque.
RAINHA – Quer transar?
REI – Estou com muita raiva.
RAINHA – Eu também estou.
REI – E daí?
RAINHA – Não quer mais transar?
REI – Claro que quero.
(Blecaute).
Continua...
O sentimento não pode parar!
Pague pelos anúncios e tenha bons frutos no amor! (Ou aprenda fórmulas de ironia)
Veja filmes do Mel Brooks, leia Milan Kundera, ouça The Fratelis, faça sexo com cuidados básicos, volte sempre ao Fantástico mundo do Rafa!
Espetáculo dedicado a todas as Marian(n)as e Dianas
que me ensinaram muito o que fazer e o que não fazer
Obrigado pelo carinho, pelo tesão e pelas neuroses
que me ensinaram muito o que fazer e o que não fazer
Obrigado pelo carinho, pelo tesão e pelas neuroses
O DIABO
O HOMEM
A MULHER
A ANJA
1. O laboratório existencial do Diabo
(Toca a música de faroeste de Ennio Morricone, tema de “The good, the bad and the ugly”. Em cada lateral do palco surgem o
HOMEM e a MULHER em posição de duelo. No meio, à posição de juiz, aparece O DIABO).
DIABO – (Em tom cerimonial). Estamos aqui reunidos hoje para fundir essas almas na santidade do casamento. (Solta um som primitivo de prazer, como se a alma salivasse). Se alguém sabe de algo que possa impedir essa união que cale a boca! Ou cale-se para sempre! Boa noite, eu sou o Diabo. Creio que todos aqui conhecem a minha obra. Buuuuuu! Buuuuuu! Seis, seis, seis, seiscentos e sessenta e seis, sim, senhoras e senhoras, sou eu, o maior vilão da História. Mas não temam! Estou de férias. Quero apenas me divertir. Pensam que é fácil engendrar uma crise econômica mundial? Aconselhar presidentes, senadores e deputados? Apoiar partidos de extrema-direita? Desenvolver táticas de guerrilha rebelde? Inspirar grupos radicais religiosos? Escrever músicas pop? Também preciso de descanso. Por isso, escolhi um tema para incendiar os corações. Eu estou aqui para inspirá-los. Para desafiá-los diante da verdade que guardam em silêncio em suas mirabolantes cabecinhas. Para provar a vocês que o ser humano não se envolve afetivamente por amor. O que vocês fazem é projetar o próprio ego na idealização que fazem do outro para se auto-afirmar. Vocês precisam se auto-afirmar o tempo todo diante do mundo e do espelho. Já o amor é algo para que a maioria de vocês não deseja estar preparada. (Com sarcasmo). Ohhhhh! Mas que surpresa! Quantas vezes já tentaram me convencer de que amar é oferecer? É dividir parte da própria alma com uma pessoa sem desejar nada em troca! É ver alguém crescer a partir daquilo que você dá! Mas estamos interessados nas teorias idealistas de JC? Inclua no pacote aquele papo da outra face. Quem não reagiria? Vocês querem apanhar mais da vida? É claro que não! Há mais de 2000 mil anos JC já estava ultrapassado. A minha relação com a turma angelical se constitui de um sadomasoquismo espiritual. Gosto de dar uns tapinhas no além. As criaturas divinas se orgulham de suportar o sofrimento, bate, elas me dizem. Eu bato, mas depois elas me acusam. Vem daí a nossa batalha. Eu dou o que elas pedem, elas me apontam dedos acusatórios e moralistas. Só que o tempo passa. Estamos no Século 21, é a era do indivíduo digital. Agora vocês são seres instantâneos, pop, pop, pop, ratinhos emocionais na gaiola do coração do dissimulado criador. Bem-vindos, sonhadores, ao laboratório existencial do Diabo.
HOMEM – Você vem sempre aqui?
MULHER – Ai, você é tão machista e previsível. (Pausa). Não é sempre, mas às vezes eu gosto disso, sabia?
DIABO – (Deliciando-se). Como são repugnantes! Por que não aceitam de uma vez? O amor é singelo demais para a humanidade. Pensam que estou sendo irônico? Sou muito sincero quando desejo. Vocês querem o conflito! Vocês querem uma falsa causa pela qual sofrer para fingir que são grandes. Vocês querem culpas, neuroses, ressentimentos, hostilidade e corações dilacerados como substitutos à incapacidade de amar alguém que não a si próprios. Mas quem sou eu para dar sermão? Não percam tempo com o pensamento, senão daqui a pouco vocês vão querer voltar a ler livros. E daí vão querer fazer escolhas baseadas em referenciais pessoais. Já pensaram no caos que vai ser? Nada disso! Rejeitem os livros! As minhas palavras sobre os sentimentos são só, tipo assim, um toque de amigo. Acreditem em mim, o amor é singelo demais para a humanidade.
UMA VOZ FEMININA NOS BASTIDORES – O que você sabe sobre o amor, demônio?
DIABO – Quem está aí? (Silêncio). Quem está aí? Mostre-se! (Com voz raivosa). Pelas leis do direito universal eu tenho o poder de fazer com que se mostre, intruso! Você está no meu território. Mostre-se!
(Entra a ANJA que se posta à frente do DIABO, dando as costas para a platéia).
DIABO – Maldição! Homem e mulher, saiam e retornem apenas ao meu chamado.
(Saem HOMEM e MULHER).
ANJA – Eles não têm nomes?
DIABO – O quê?
ANJA – O homem e a mulher não têm nomes? Identidades dão impressão de sentido aos seres humanos.
DIABO – Reconfigurar!
(DIABO e ANJA se movem como se o olhar sobre a cena girasse de ângulo, assumindo a posição do duelo).
DIABO – Onde estão as suas asas, fedelho?
ANJA – Temos novas tecnologias.
DIABO – Qual dos três é você?
ANJA – Depois de tanto tempo, ainda não diferencia os nossos olhares?
DIABO – Não tem a fúria autodestrutiva do Gabriel, nem a arrogância metida a superior do Rafael, só pode ser o ha, ha, ha, grande negociador Miguel. Miguel na pele de mulher. O que faz aqui, arcanjo? Está invadindo o meu território.
MIGUEL – Vim acompanhar a experiência.
DIABO – Não tem direito sobre essas almas, passarinho. Sabe bem que não pode interferir nos meus domínios.
MIGUEL – Não tenho poderes sobre essas pessoas. Estou aqui para garantir o bem-estar de quem está ao nosso redor.
(O DIABO observa e encara em silêncio a platéia por alguns segundos).
DIABO – Eles gostam mais de mim, arcanjo. Você é quadrado demais, padronizado e politicamente correto. Estou de férias e vou me divertir em mostrar que o estilo de vida que eles levam nada se assemelha ao ideal que fingem defender.
MIGUEL – Eu acredito no amor humano. (Estala os dedos. Toca “You´re my all, my last, my everything” cantada por Barry White). Os românticos são bem mais estimulantes do que parecem.
DIABO – Desde quando os arcanjos fazem uso da ironia?
MIGUEL – Desde que o Diabo começou a falar de amor.
DIABO – Não interfira, passarinho.
MIGUEL – Não dê motivo, mula-sem-cabeça.
DIABO – O seu exército é maior, mas estamos no meu território.
MIGUEL – Queremos paz. Você é quem adora incitar israelenses e palestinos.
DIABO – Siga o seu caminho.
MIGUEL – Faça-me rir. (Sai).
DIABO – Agora que o passarinho arrogante fugiu da boca da serpente podemos continuar. Essa noite homem e mulher serão muitos, serão eternos. Que ecoem as trombetas, o circo dos amores chegou! (Toca o refrão de “Highway to hell” do AC/DC).
2. Rei e Rainha
(Entram o HOMEM, com uma coroa de louros na cabeça, e a MULHER com asas de fada, cada um ocupando um lado do palco).
HOMEM – Psiu.
(A MULHER faz que não é com ela).
HOMEM – Psiu.
MULHER – É comigo?
HOMEM – Sim.
MULHER – Vai ter que melhorar a sua fala, campeão.
HOMEM – Boa noite, ninfa.
(Ela o mede com o olhar).
MULHER – Quem é você, hein?
HOMEM – Eu sou rei.
MULHER – Rei?
HOMEM – Possuo palácio, guarda pessoal, advogados e o novo modelo de Nintendo.
MULHER – Que exibido! Tem alguma cultura?
HOMEM – Cultura? Por Netuno, o que seria isso?
MULHER – Arte, antropologia, autoconhecimento, os maiores bens espirituais humanos. Misture um pouquinho de cada que vira cultura.
HOMEM – Você é do tipo cabeça, é?
MULHER – Não tente me rotular, sou inclassificável.
HOMEM – É mesmo? Pode me dar um exemplo da cultura que carrega?
MULHER – Você vai rir.
HOMEM – Juro que não.
MULHER – Shakespeare, Nietzsche, samba de raiz e “A pequena sereia”.
HOMEM – Hum, já ouvi falar.
MULHER – Ouviu nada! Você está me enganando.
HOMEM – Eu não enganaria você, ninfa.
MULHER – Eu não sou ninfa. Sou rainha.
HOMEM – Rainha?
(O REI corre em direção à RAINHA e tromba com um escudo invisível no meio do palco que o arremessa para trás).
REI – O que é isso? Por que está se protegendo de mim? Para que tanta resistência?
RAINHA – De onde você vem?
REI – Atenas, Roma e mais recentemente bolsa de valores de Nova Iorque.
(Ela ri).
RAINHA – Você é divertido. Você se acha!
REI – Eu me acho e agora achei você.
RAINHA – Espertinho! Eu não quis dizer isso.
REI – Eu sei.
RAINHA – Se você é mesmo rei e passou por tantos lugares, como não tem uma bagagem cultural?
REI – Lá vem você de novo com esse papo. Eu me amarro no Robert De Niro. Serve?
RAINHA – Hum! De Niro, um clássico.
REI – Sou clássico.
RAINHA – É mesmo? Qual é o sentido da vida?
REI – Batalhas épicas e donzelas nuas de graça.
RAINHA – Típica resposta de macho dominador. (Pausa). Gostei disso. O macho alfa está na moda de novo, será a tendência do próximo verão.
REI – (À parte). Do que diabos ela está falando? (Para ela). O que mais você espera de um homem, rainha?
RAINHA – Nada demais. Charme, inteligência, sensibilidade, autoconfiança, cumplicidade, sinceridade e pegada... ah, e deve gostar dos Beatles. Só isso.
REI – Caramba!
RAINHA – Onde fica o seu reino?
REI – No capital flutuante e o seu?
RAINHA – Entre Copacabana e o Leblon.
(De repente, o REI sorri).
RAINHA – O que foi?
REI – Adoraria beijar uma das suas orelhas.
RAINHA – Como se atreve?
REI – Sou um rei atrevido.
RAINHA – Aonde espera chegar com uma atitude dessas?
REI – A um novo paraíso. Me deixa entrar na sua vida.
(Silêncio).
REI – Me deixa entrar na sua vida e virar você do avesso.
(Novo silêncio).
RAINHA – O que está esperando?
REI – O que você disse?
RAINHA – O que está esperando para se atrever? Eu não vou mais ficar fazendo jogo duro, não serve de nada. Você não vai ser idiota de me dar menos valor porque eu também estou a fim e quero me entregar, vai?
(O REI se espanta, mas rapidamente se liga e corre para abraçá-la. Blecaute, começa a tocar “Let´s get it on”, na voz de Marvin Gaye. Depois de um tempo no escuro, a música é cortada. Foco no DIABO).
DIABO – Que delícia é a conquista. Os primeiros meses, um paraíso. Passo a passo surrupiando a alma do outro. Pouco a pouco enroscando a teia de projeções. Vamos acelerar um pouco o tempo e a ação. Quero paixão, quero loucura, não percam a chance, não se arrependam depois! (Desaparece).
RAINHA – Milorde, adorei a nossa noite, o jantar, o filme, o nosso momento juntinhos. Nunca senti isso antes, você é todo gostoso.
REI – Maileide, você é linda. Tão inteligente. Aprendi tanto nesses meses. Livros, filmes, músicas. (Pausa). Quem diria que um guardanapo seria tão útil?
(Mudam de posição).
RAINHA – (Com doçura) Como é o seu nome secreto?
REI – Menino. E o seu?
RAINHA – Menina.
REI – Você paga imposto por ser tão bonita assim?
RAINHA – (Ela ri). Eu amo você.
REI – (Ele a observa surpreso). Eu também.
(Afastam-se).
RAINHA – Onde você estava?
REI – Na caçada à corça do pé de bronze.
RAINHA – Podia ter me avisado.
REI – Sim, sim. A caçada foi ótima.
RAINHA – Você me ouviu?
REI – Sim, sim. A caçada foi ótima.
(Afastam-se mais).
RAINHA – Estou com aquela nova doença. Chama-se gripe.
REI – Cruzes! Eu vou à confraria me embebedar com os meus irmãos em armas. Boa noite.
(Afastam-se um pouco).
RAINHA – Tive febre à noite inteira. Me dá colo?
REI – Hoje não dá, tenho várias reuniões e estou de ressaca. Que tal amanhã?
(Afastam-se mais ainda).
RAINHA – O que você está pensando?
REI – Nada.
RAINHA – Nada?
REI – Nada.
RAINHA – Está acontecendo algo com você?
REI – (Para a platéia, revelando o que realmente pensa). Sim, estou estagnado com o nosso cotidiano. Sim, tenho a impressão de que por melhor que eu seja você nunca está satisfeita como era no início. Sim, eu penso em outras mulheres. (Volta para ela). Nada.
RAINHA – Nada?
REI – Nada. Deveria?
(Afastam-se a extremos como lá no início da cena).
RAINHA – Vamos ao cinema ou à execução de cristãos que você tanto gosta? Ouvi dizer que chegaram novos leões.
REI – Cansado.
RAINHA – Quer comer algo? Podemos pedir para entregarem um javali.
REI – Não, você faz questão?
RAINHA – Eu não como mais. Estou ficando acima do meu peso.
REI – Então, por que perguntou?
RAINHA –Apenas me preocupei com você.
REI – Para que se preocupar?
(Silêncio).
RAINHA – Me abraça?
REI – Daqui a pouquinho, deixa acabar o documentário sobre os dragões de Komodo.
(A RAINHA corre em direção ao REI e tromba com um escudo invisível no meio do palco que a arremessa para trás).
RAINHA – Por que você está se protegendo de mim?
REI – Por Zeus, mulher, eu não estou me protegendo.
RAINHA – O que houve com você?
REI – Nada.
RAINHA – NADA acontece com você.
REI – Calma, calma, foguentinha. Está histérica!
RAINHA – E o nosso amor?
REI – Oi?
RAINHA – E o nosso amor?
REI – Sei lá.
RAINHA – Você me ama?
REI – Acho que sim.
RAINHA – ACHA?
REI – Acho.
RAINHA –Você se acha! Isso sim!
REI – Sim, eu me acho.
RAINHA – Acabou.
REI – Já vou tarde.
(O REI se afasta. Fica parado de costas por alguns segundos e retorna, encontram-se no meio do palco).
REI – Olá, quanto tempo!
RAINHA – O que está fazendo aqui?
REI – Vim ver você.
RAINHA – Acha que pode voltar quando quiser?
REI – Apenas senti saudades.
RAINHA – Você só dá valor quando perde, não sabe viver na alegria.
REI – Você não sabe o que quer, mulher. Se estou longe, reclama, se estou perto, reclama.
RAINHA – Agora não quero nada.
(A RAINHA se afasta. Fica parada de costas por alguns segundos e retorna, encontram-se no meio do palco).
RAINHA – Não sei ao certo o que vim fazer aqui.
REI – Quer transar?
RAINHA – Você só pensa nisso.
REI – Parece que é a única coisa que vale a pena pensar.
RAINHA – Que tal pensar no futuro?
REI – Eu penso.
RAINHA – E nos nossos filhos?
REI – Que filhos? Nós não temos filhos.
RAINHA – Mas podemos ter, só que você prefere ficar se divertindo com essas pistoleiras.
REI – Preciso de um uísque.
RAINHA – Quer transar?
REI – Estou com muita raiva.
RAINHA – Eu também estou.
REI – E daí?
RAINHA – Não quer mais transar?
REI – Claro que quero.
(Blecaute).
Continua...
O sentimento não pode parar!
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