A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 6

De Rafa Lima
Mais do purgatório (Final)

“Um brinde, escritora!”.
A garrafa de espumante trazida pelo visitante em mãos, a rolha voa, Vicky Pierrot celebra, sonha, flutua, enquanto ele tem o cuidado de encher as taças, o som do cristal em contato com o seu semelhante, bebem, salve o prazer, sempre!, sempre!, na verdade, ela saboreia, engole, ele simula, nem molha os lábios, pouco a pouco, o efeito, fraqueza, confusão, surpresa, tristeza, bem lentamente, o grande cágado cagando o fim, “o que está acontecendo?”.
“O que está acontecendo?”, “Vicky Pierrot, agora, você vai ser eterna!”, ela internaliza o ódio ao momento, decifra, tudo tão simples, “o quê?”, “Vicky Pierrot, agora, você vai ser eterna, não compreende?”, “o quê?, eu sou uma ferramenta?”, angústia mais pesada do que o ar, “não, amor”, ele a olha com ternura, “você é o órgão principal, o coração que agora precisa parar de bater para projetarmos a nossa causa muito além na linha do tempo”, uma lágrima de chuva ácida escorre sobre o rosto que recebe a tormenta inexorável da ação-sem-volta, “lá se vai a idiota da esperança”, “não chore”, cogumelo atômico emocional, “para que tudo isso?, porra!”, a leoa ruge, ele aguarda que retorne à forma humana, vem, curiosidade, vem, chicote!, “não sabe, anjo?”, “é lógico que não!”, “com todo o respeito, agora que já criou o que há de melhor, você vale muito mais para a nossa causa depois de morta, não temos mais escolha, o público prefere a necrofilia, é um vício natural do ser humano, saborear a perda ao extremo, seremos para sempre lembrados, você, Vicky Pierrot, escrita para sempre na história da arte!, todos nós a admiramos por se oferecer por inteiro até as últimas conseqüências”, “não é possível!, é uma brutalidade, não concordo mesmo com isso, que primitivo, simiesco, há tanta gente boa que sabe dar valor ao que está vivo”, “são poucos, o nosso objetivo é o mundo”, “eu não quero morrer... por favor”, “ninguém quer, você é linda, muito linda”, “você é louco”, “não diga isso, sou apenas o machado”, “de Assis?”.
Ela ri, o último riso, “como é bom!, amo a vida!, amo, amo, amo!”, ele retribui, um micro-sorriso, “adoraria que ela continuasse viva, mas a causa é o bem maior”, desesperos reprimidos com a agilidade de costume, o silêncio adora cheiro de livro novo, desconfia de que seja o resíduo final do espírito da madeira transformada em papel.
“Tenho tanto a escrever ainda”, “já fez o bastante, amor, genialmente”.
O baque interno, ela cai, “eu fui muito feliz”, vê uma parede, sente falta dela, a língua procura os lábios como se buscasse um derradeiro prazer, alimentar-se da impressão de vida, sente medo, quer voltar atrás, muito atrás, quer se livrar do talento de decodificar o comportamento dos meninos e das meninas, tenta cantarolar, a felicidade vem junto?, “vem comigo, não me abandona”, engasga, “o meu nome é Vitória”, tenta falar com o mundo, “o meu nome é Vitória”, a garganta se fecha, “ar!, ar!, por favor, ar!”, a escuridão da eternidade abocanha a consciência, o silêncio do silêncio do silêncio do silêncio ad eternum. O assassino se ajoelha ao lado do corpo santo sem vida, reverência, solenidade, a certeza da criação de nova idéia-deusa, mas, só para garantir, guarda-lhe a alma no bolso.
“Obrigado, Vicky Pierrot!, os inventores do próximo futuro agradecem”.
Morrer pode ser simples e indolor, nascer é que é um parto.

.... Nota do Rafa ....
Dedico este conto à Diana Regina de Carvalho Damasceno, vó, que me acostumou ao carinho, mas também à falta (já foi flertar com o além), e que, quando eu era menino, quase tão bobalhão quanto hoje, acreditou que eu podia andar de bicicleta.

.... Enquanto isso em Pessoinhas

















A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 5

De Rafa Lima

O purgatório

A chave gira apenas uma vez na fechadura da porta do apartamento, aberta, nada alerta, Vicky Pierrot, habituada a dar sempre duas voltas, “ele está aqui”, não mais estranha, nem desconfia, move-se sem medo quando a escuridão no interior do imóvel lhe toma a visão, entra, ouve o som de pessoas em celebração na rua e nos prédios, ano-novo, novo sentido de vida veio visitá-la nessa volta da Terra em torno do Sol, Vicky Pierrot paparicada pela realeza do talento, a euforia da festividade lhe acelera os movimentos, a cidade com ânsia de expansão, a jovem escritora pressente algo extraordinário, a alegria lhe acaricia um mamilo sob o vestido, “que vida-delícia é essa que eu tenho?”, pressiona o interruptor, a luz da sala se acende, “sabia!”, sorri de satisfação, o invasor se tornou um simulacro de amigo.
“Admirável a visão da máfia das letras que inventou para a televisão”, “cheguei perto?”, “não faz idéia”, “muito longe?”, “quem sabe?”, “você é impossível”, “sou?, de qualquer forma, vai trazer benefícios à causa”, “fico feliz em ajudar”, “e, hoje, animada?”, “sempre”, “adora festas”, “claro que sim, vim ao mundo para me divertir também, o prazer é o meu protetor”, “pensei que eu fosse o seu protetor”, “talvez se tornasse se confiasse em mim e me oferecesse algumas respostas”, “confio em você, mas não posso expor outras pessoas que confiam em mim”, “quem são?”, “você não entende”, “Rufus Lemon?, ele existe?”, “não insista, não desperdice o nosso encontro”, o olhar psicótico, ela recua, cala-se, baixa a cabeça, por que o chicote da curiosidade arde tanto?, “natureza humana”, aceita o papel, “sou a ponta da flecha”, ainda resta uma chicotada, “posso ao menos fazer uma pergunta que diz respeito a você?”, “faça”, “Tchuco?”, “o quê?”, “você é o ex-vocalista da banda Sêmen THC que desapareceu há dez anos atrás e nunca mais foi visto?”.
Carrossel espacial-temporal, a cor do silêncio, o homem adquire feições de estátua mítica, representação terrestre de milenar deus pagão, imobilidade da existência, a falta de sentido reluz, o oco, por isso sentem que é preciso inventar o sentido, e outro e outros, só que dessa vez novos!, com resíduo de Big Bang, a transição, o mundo, gigante cágado, move-se passo a passo, século a século, para outro lugar no tempo, de repente, a estátua sorri com o canto da boca.
“Menina, você possui poderes de observação extraordinários”, “não sou mais menina”.
Cravado!, encontram-se no subsolo da alma.
Tanto tempo sem se deixar tocar, por que tanta rigidez?, vai se defender da vida?, o beijo afoga o artificialismo da juventude, u-hu!, o que é a boca?, portal, “ele está com uma aparência terrível, mas que desejo é esse que me causa?”, o mistério engana.

Continua na parte final...
...Enquanto isso em Pessoinhas

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A descoberta da jovem escritora (wannabe a classic) - Parte 4

De Rafa Lima

Mais do céu

Antes era tudo tão difícil, o que mudou?, agora, o êxito contínuo das histórias de Vicky Pierrot, a reinvenção da importância da palavra escrita no Século 21, que conquista!, (re)conquista do tempo, tubarão mental, ler virou moda mais uma vez na cidade, o passado ecoa hoje e em breve de novo, megalomania compulsiva para multidões em livrinhos, “sim!, livros são asas”, fogos de artifício para as almas, “não se deixe levar pela vaidade, menina, se fizer sucesso, não mostre o rosto”, Tchuco avisa, “e nunca fale sobre nós com ninguém!”, mas ela esperou demais por esse momento, “não vou ter vergonha do gozo, eu quero gozar”, festa, festa, festa, não foi fácil chegar aqui, ao contrário do que alguns sugerem, “que boa vida leva o escritor”, e diferentemente do que idealizam outros, “que realidade fascinante tem quem escreve”, Vicky Pierrot teve que negociar com o cotidiano, dia após noite após dia após noite, fragmentar-se, às vezes até quebrar-se a contragosto, reinventar-se, limpar o fundo do poço, reaprender a encontrar o desejo de voar (com as asas doloridas é foda!) e principalmente identificar a própria raiz, conhecê-la, saboreá-la, reconhecê-la pelo cheiro e pelo gosto, essência agridoce, o pé-no-chão que aponta em contrapartida para o centro da Terra, equilíbrio?, ho, ho, ho, hi, hi, hi, ha, ha, ha, viva!, viva!, viver durante anos no passeio de montanha-russa emocional, “a vida do escritor é a dança do baile de formatura com o caos”, festa, festa, festa, Vicky Pierrot conhecida, lida, devorada por novas mentes, iludida?, o sucesso cega o sonhador, enquanto a podridão não cobra os juros do empréstimo, deixe a menina ser feliz!, Vicky Pierrot, sinônimo de felicidade, cria, escreve, produz, à maneira dos velhos tempos de início da Era Digital, lá longe, os dedos de volta ao teclado do computador, os olhos disparando palavras, conflitos, sentidos, soluções, mentiras?, também, talvez sem perceber que engana a si mesma, o melhor momento da vida, quer acreditar, mulher-invisível, o corpo feito de textos, Vicky Pierrot apenas escreve, mais nada, atinge o sentido mínimo, então, o repórter Andreas Melo, cão farejador, depois de muito xeretar, investigar daqui, procurar dali, ler isso, pesquisar naquilo, fingir um dia, atuar no outro, sempre registrando, passo a passo, hora a hora, “calma, que o caminho é por aqui”, descobre a mente criativa por trás da máfia das letras, aproxima-se, cria a conexão, alimenta o ego alheio, dança no baile de formatura com o caos.

“Admiro o seu trabalho”, “obrigada”, “parabéns, você produziu uma obra e tanto em pouco tempo”, “escrever é a minha conseqüência por estar viva”, “o seu nome é mesmo Vicky Pierrot?”, “na verdade, Vitória”, ela gosta dele logo de cara, “que divertido”, ele gosta dela, “mais bonita do que eu imaginava”, a princípio, papo informal sem más intenções, “você vai acabar divulgando tudo o que eu falar aqui, certo?”, divertem-se, “é o meu trabalho”, “como me achou?”, “tenho os meus métodos”, “quanto mistério”, “o mistério aqui é você”, “sou?”, “estou produzindo uma matéria sobre a máfia das letras”, ela ri, desconversa, “isso não existe, só serve para potencializar o interesse do público”, “não existe mesmo?”, “não que eu saiba”, “quem são os seus editores?”, “não posso contar”, “por quê?”, “eles são tímidos”, “não há nenhuma informação nos livros além do texto”, “minimalismo”, “é ilegal”, “estilo”, “sempre irônica?”, “não vai me entregar, vai?”, “já ouviu falar de Rufus Lemon?”, “outra invenção para tornar o Rio de Janeiro mais atraente do ponto de vista artístico depois do período de estagnação criativa que passou”, “lembra do Sêmen THC?”, “claro, eu tinha as músicas, sabia as letras, fui a vários shows”, “eu também gostava”, os dois cantam um sucesso musical do passado, “menino, como anos depois essas canções continuam a tocar nas nossas cabeças?”, “é o trabalho deles, também conhecido como lobotomia social”, riem mais, “você conhece o Tchuco?”, “o vocalista que desapareceu?”, “sim”, “vi em shows, ninguém soube dele depois que largou a banda”, “eu o encontrei”, “sério?”, “dois anos depois do fim, descobri que trabalhava num matadouro”, “que louco!”, “não é?”, “mas ele sumiu de novo?”, “perdi o rastro dele”, “você gosta muito do seu trabalho, hein, rapaz?”, “não menos que você”, “touchè”, “o que ele estava fazendo no seu apartamento na semana passada?”, “quem?”, “o Tchuco”, “você sabe onde moro?”, “ao que parece”, “você é perigoso”, ela sorri para ele, “não, se estivermos no mesmo barco”, “do que está falando?”, “eu posso fazer você chegar a mais pessoas do que imagina, milhões, a televisão é fascinante”, “como?”, “seja honesta comigo”, “para depois me virar as costas e eu ficar arrependida do que fiz?”, “você não vai se arrepender”, “como pode ter tanta certeza?”, “já vi acontecer muitas vezes, me dê uma entrevista exclusiva com a equipe de filmagem, vai ser conhecida no mundo todo”, “para quê?”, “para que você escreve?”, “para acertar as pessoas em cheio”, “viu só?, posso ajudá-la”, “o que tenho que fazer?”, “apenas me diga a verdade”, “não se sabe o que é a verdade, portanto, vamos inventá-la”, “só não minta”, “eu não minto, ao menos não enquanto estou trabalhando”, “trabalhando?”, “é, sonhando”.



Continua no purgatório...



Enquanto isso em Pessoinhas
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